Com mais de 80 obras no currículo, entre originais e adaptações, a
dramaturga Jo Clifford, do Reino Unido, iniciou em 1992 a escrita de
espetáculos que contestassem a forma como muitos cristãos tradicionais
usam a fé para justificar o preconceito. Dois textos vieram antes do
polêmico O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, que estreia nesta segunda a versão brasileira no Cena Contemporânea.
O
monólogo foi ao palco pela primeira vez em 2009 e leva ao público o
seguinte questionamento: o que aconteceria se Jesus voltasse à Terra
como uma mulher trans? A ideia é deixar um convite aberto para que cada
espectador pense em um mundo mais tolerante, justo e igualitário.
Na
primeira estreia, a peça atraiu centenas de manifestantes para as ruas
fora do teatro, além de uma enxurrada de críticas na internet. Grande
parte dos ataques veio de quem nem ao menos tinha visto o espetáculo.
“Fui zombada por toda a imprensa popular na época. Mas ao longo dos anos
as coisas mudaram. Fui convidada a realizar a peça até em igrejas e a
resposta das pessoas foi muito positiva”, afirma a autora.
Para
Jo, uma artista trans, o teatro firma seu poder de conscientização e
abre uma importante porta para falar a respeito do preconceito e
representatividade. “A grande vantagem do teatro é que o público
compartilha o mesmo espaço físico enquanto contamos nossa história. Essa
é uma das armas mais poderosas que existem contra a discriminação.”
Para
a dramaturga, a descoberta de sua nova e verdadeira identidade
possibilitou um renascimento e uma vivência de amor e respeito ao
próprio corpo. Por meio do texto, que reconta histórias bíblicas
reconhecidas sob essa perspectiva, Jo busca mostrar que Jesus nunca
teria apoiado o preconceito contra pessoas trans.
A
versão brasileira, produzida em São Paulo, é dirigida por Natalia
Mallo, com a atriz transexual Renata Carvalho no papel de Jesus. O
processo de montagem da peça brasileira durou um ano, com preparação
corporal, aulas de voz a um minucioso trabalho para descobrir a versão
nacional da personagem, com a identidade e vivência da pessoa trans no
Brasil.
Para
Renata Carvalho, é fundamental a importância de um espetáculo com a
temática trans e mais importante ainda que uma intérprete trans suba ao
palco, colocando em cena a representatividade que o grupo tanto busca no
cotidiano. “Nós lutamos para que pessoas trans estejam no palco, assim
como em demais espaços do dia a dia. Nós ainda somos marginalizadas e
queremos essa presença para que nossos corpos sejam normalizados. Muitas
vezes, não vemos nossos corpos sendo humanizados, apenas sexualizados”,
afirma Renata. Para ela, a presença em todos os espaços cria a
possibilidade de que esses corpos e identidade se normalizem como
presença normal e cotidiana.
O espetáculo, tão
envolto em polêmicas, despertou reações de ódio apressadas, de quem não
teve contato com o texto para entender que ele fala de tolerância,
perdão e amor ao próximo. “O teatro tem um poder muito forte de
transformar. Acredito que esse espetáculo, aliado a outras ações, pode
ajudar a diminuir a transfobia. A arte mudou minha vida nesse sentido e
me deu a oportunidade de debater e falar cada vez mais com todas as
pessoas sobre o tema”, destaca a atriz.
Para
Renata, o preconceito se forma pela falta de informação, tornando ainda
mais importante a apresentação do espetáculo e a expansão do debate em
diferentes camadas sociais. Fieis à obra original Natalia Mallo e Renata
incluíram músicas, trejeitos e um linguajar brasileiro para
personificar a nova versão. Em cena, o foco, a voz e protagonismo são da
mulher trans, que busca normalizar sua presença por meio do diálogo e
convivência. “Muita gente só nos enxerga como travesti, acreditam que
não somos artistas. Essa representatividade ainda está muito no início
mas tem crescido aos poucos”, afirma a atriz, que é também uma das
criadores do manifesto da representatividade trans.
Centenas
de pessoas trans morrem diariamente no Brasil, o país que mais mata
travestis e transexuais no mundo. Em 2016, foram 127 casos, um a cada 3
dias. A expectativa de vida é de 35 anos, menos da metade da média
nacional. Aos 36 anos, Renata Carvalho leva para o palco muitas das
violências que já sofreu e lembra: a questão é urgente e precisa ser
mostrada, dialogada e normalizada agora.
Cena Contemporânea
De 22 de agosto a 3 de setembro. O evangelho segundo Jesus, rainha do céu
(SP):Segunda (28), na Caixa Cultural, às 21h; Terça (29), no Teatro
Sesc Taguatinga Paulo Autran, às 20h; Teatro Sesc Ceilândia Newton
Rossi, às 20h; Teatro Sesc Gama Paulo Gracindo, às 20h.
Outros espetáculos da segunda: Maratona em NY (Colômbia), no Teatro Sesc Garagem, às 19h. Tsunami (DF), no Teatro Sesc Taguatinga Paulo Autran, às 20h. Duas gotas de lágrimas num frasco de perfume, no Teatro Funarte Plínio Marcos, às 21h.
Fonte: Correiobraziliense
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