Áudios inéditos do Superior Tribunal Militar (STM),
solicitados pelo Estado, mostram a íntegra de um julgamento de trinta
anos atrás: o do então capitão do Exército Jair Messias Bolsonaro, à
época com 33 anos, hoje com 63 e bem cotado presidenciável da
extrema-direita. Entre 1987 e 1988, Bolsonaro foi julgado duas vezes,
por diferentes Conselhos de Justificação, sob a acusação de “ter tido
conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal, o
pundonor militar e o decoro da classe”. Na primeira instância, em
janeiro de 1988, foi considerado culpado pela unanimidade dos três
julgadores, todos oficiais militares. Na última – o STM, em sessão
secreta de 16 de junho de 1988, integralmente gravada - Bolsonaro foi
considerado não-culpado por a 9 a 4 (ouça os áudios no final da
reportagem).
Bolsonaro e aliados de Lula trocam acusações durante atos em Curitiba
O julgamento do STM foi a última etapa do longo e
momentoso caso de rebeldia militar ocorrido durante a presidência de
José Sarney – a primeira depois da ditadura – e o desenrolar do segundo
ano da Constituinte. O maior derrotado pela absolvição do capitão
Bolsonaro foi o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército
de Sarney, que avalizara publicamente a decisão da primeira instância,
reformada pelo tribunal superior.
São 37 áudios
nítidos, uns longos, outros mais curtos. Jogam luz numa história que vai
sendo esquecida, tem sido mal contada, e que esclarece uma parte
importante na trajetória do polêmico personagem. Foi com esse episódio,
cheio de vais e vens, que Bolsonaro saiu do anonimato, virou político e
agora se lança à presidência da República.
Um bom começo é vê-lo, ali pelo final de agosto de 1986,
caminhando à paisana em direção à sucursal da revista Veja, no Rio de
Janeiro. Levava na bolsa a farda de capitão – e com ela foi fotografado
na redação. A foto e o artigo “O salário está baixo” – um petardo
inusual contra a autoridade militar e o governo Sarney – foram
publicadas na seção “Ponto de vista”, última página de Veja de 3 de
setembro de 1986.
Fruto de uma demorada negociação, obtida por iniciativa
de Veja, mas francamente colaborativa por parte do capitão, o artigo
precisou de mais de uma ida à redação, e de adaptações compatíveis com o
estilo da seção. Não era sempre que um oficial do Exército dava a cara
pra bater, com nome, sobrenome, clareza, radicalidade e contundência. O
pé do artigo – disponível na internet - informava que seu autor era
“capitão do 8º Grupo de Artilharia de Campanha, paraquedista, 31 anos,
casado e pai de três filhos”.
Foi levado à prisão disciplinar, por quinze dias, a
partir de 1º de setembro, determinada em boletim interno pelo comandante
da Brigada de Paraquedistas, coronel Ary Schittiny Mesquita. Entre as
razões da “transgressão grave” estava “a de ter elaborado e feito
publicar em revista semanal de tiragem nacional, sem conhecimento e
autorização de seus superiores, artigo em que tece comentários sobre a
política de remuneração do pessoal civil e militar da União”. E, também,
“a de ter ferido a ética gerando clima de inquietação no âmbito da
Organização Militar”.
O rebelde da ocasião ganhou admirações nos quartéis,
espaço na mídia, e simpatia da oposição, inclusive à esquerda. Cumprida a
prisão, seguiu a carreira no 8º GAC de Paraquedistas. Continuou a
receber elogios por desempenho – uma marca de sua trajetória desde que
entrou no Exército, como registram os assentamentos militares que
constam dos autos do processo guardados no STM, assim como os áudios.
São três volumes, com 1.535 páginas, que o Estado
consultou com atenção. É no primeiro deles que consta o que aconteceu em
fevereiro de 1987, seis meses depois da prisão: ao sair dos
paraquedistas para a Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais
(ESAO) Bolsonaro recebeu elogios formais por “autoconfiança,
combatividade, coragem, idealismo, indivíduo de ideias e de juízo,
iniciativa e vigor físico”.
Arma é garantia de nossa liberdade', defende Bolsonaro em Curitiba
“Pôr bomba nos quartéis, um plano na ESAO”, publicou a
revista Veja na edição de 25 de outubro daquele 1987, terceiro ano do
governo Sarney. A reportagem informava que Bolsonaro e seu colega da
ESAO, Fábio Passos, prepararam um plano, “Beco sem saída”, para explodir
bombas em unidades militares do Rio. Tarde da noite da sexta-feira em
que Veja saía, os dois oficiais foram chamados ao comando da ESAO, e
escreveram, de próprio punho, textos em que negavam a autoria do “Beco
sem saída” e contatos com a revista. Bolsonaro considerou o publicado
como “uma fantasia”.
Na edição seguinte, de 1º de novembro, Veja publicou “De
próprio punho” – reafirmando a reportagem anterior e reproduzindo o que
seria um fac-simile de dois croquis, supostamente desenhados por
Bolsonaro, indicando locais em que as bombas seriam detonadas. Inquirido
e reinquerido em sindicância da ESAO, Bolsonaro nega. Na questão mais
delicada – a autoria dos croquis - dois exames grafotécnicos, um da
Polícia Federal, outro do Exército, consideraram impossível determinar.
Facebook retira do ar páginas de apoiadores de Bolsonaro
Em 13 de novembro, o caso foi levado para um Conselho de
Justificação. Nomeado pelo ministro do Exército, Leônidas Pires
Gonçalves, o conselho se instala em 8 de dezembro. É composto pelo
coronel Marcos Bechara Couto, presidente, e pelos tenentes-coronéis
Nilton Correa Lampert, interrogante e relator, e Carlos José do Couto
Barroso, escrivão. É quando se formaliza a acusação de “conduta
irregular, ter praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor
militar e o decoro da classe”.
O conselho ouviu Bolsonaro meia dúzia de vezes, além de
seus advogados. A negativa foi mantida. Ouviu, ainda, jornalistas e
editores da revista Veja, oficiais do Exército vizinhos de Bolsonaro, as
esposas de alguns deles, incluindo Rogéria Nantes, mulher do capitão,
que recusou-se a falar. Ouviu também generais indicados pela defesa –
entre eles o general Newton Cruz, linha dura que Bolsonaro admirava
superlativamente.
Um novo laudo da Polícia Federal cravou a culpa do
acusado: “Não restam dúvidas ao ser afirmado que os manuscritos
“promanaram do punho gráfico do capitão Jair Messias Bolsonaro”. Logo
depois, a pedido do conselho, um quarto exame grafotécnico dos peritos
do Exército que fizeram o primeiro laudo não acusatório, acrescentou um
“complemento” contrário, afirmando que os caracteres “promanaram de um
mesmo punho gráfico”. Quatro exames grafotécnicos, portanto, empatando
em 2 a 2.
Em 25 de janeiro, Bolsonaro foi condenado pela
unanimidade do conselho com um libelo duro em que se registra “desvio
grave de personalidade e uma deformação profissional”, “falta de coragem
moral para sair do Exército” e “ter mentido ao longo de todo o
processo” ao negar contatos frequentes com a revista Veja.
Em fevereiro de 88, um despacho do ministro do Exército
concorda com o parecer do conselho – e ao mesmo tempo encaminha os autos
do processo para o Superior Tribunal Militar. É o Conselho de
Justificação 129-9 – relatado pelo general Sérgio de Ary Pires, tendo
por revisor o jurista e ex-deputado federal Aldo da Silva Fagundes.
Treze ministros participaram da sessão secreta de
julgamento de quatro meses depois, em 16 de junho de 88. Bolsonaro em
princípio não aceitou advogado – ele próprio fez sua defesa escrita -,
mas, no julgamento, foi defendido pela advogada Elizabeth Diniz Martins
Souto, que segue atuando em Brasília.
A sessão começa com o relatório do general Sérgio Pires,
que lê o libelo acusatório do primeiro Conselho de Justificação. Passa
muito tempo às voltas com uma questão de ordem sobre se o representante
do Ministério Público Militar poderia ou não poderia falar – acabou não
falando. Depois de um intervalo, já pelo meio da tarde, falou a defesa.
“Este processo constitui uma aberração jurídica terrível”, diz a dra.
Martins Souto no áudio 16, com 32 minutos. A posição do Ministério
Público Militar, lida pelo relator, diz que os autos colocam Bolsonaro
“na inconfortável posição de incompatibilidade para o oficialato”.
“Não culpado”, vota o relator, general Sérgio Pires.
Argumenta, no essencial, 1) que o capitão já pagou a pena pelo artigo na
revista Veja – os quinze dias de prisão; 2) carência de prova
testemunhal e 3) “profundas contradições existentes nos quatro exames
grafotécnicos, dos quais dois não apontam a autoria dos croquis” e dois
apontam, o que chama o princípio in dúbio pro réu
Oito ministros seguiram o relator: Ruy de Lima Pessoa,
Antônio Carlos de Seixas Telles, Roberto Andersen Cavalcanti, Paulo
Cesar Cataldo, Raphael de Azevedo Branco, Alzir Benjamin Chaloub, George
Belham da Mota e Aldo Fagundes, o revisor. Quatro votaram pela culpa e
pela reforma do capitão: Antônio Geraldo Peixoto, José Luiz Clerot, José
Luiz Leal Ferreira e Haroldo Erichsen da Fonseca. Aldo Fagundes, pelos
primeiros, entendeu que Bolsonaro se deixara levar pela vaidade – “essa
caminhada do anonimato à notoriedade é muito difícil” – e que isso era
“muito pouco” para afastá-lo do Exército. José Luiz Clerot, pelos
últimos, considerou que o que estava em jogo era “a mentira do capitão
Bolsonaro”, a quem atribuiu a autoria dos croquis, “o que o leva às
profundezas do inferno de Dante”.
Já era perto de onze da noite quando o julgamento
terminou. O presidente mandou entrar a imprensa, e anunciou: “Estando em
sessão pública, vou declarar o resultado dessa sessão secreta: por
maioria de votos o capitão Bolsonaro foi julgado não-culpado”.
Em dezembro de 1988, Bolsonaro foi para a reserva
remunerada com a patente de capitão. Já era, desde novembro, vereador
eleito do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão. Bolsonaro não
quis dar entrevista.
Fonte: Estadão
Ouça os áudios da sessão do STM acessando o Estadão: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-julgamento-que-tirou-bolsonaro-do-anonimato,70002249929
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