RIO — Esqueça aquela poesia que fala do amor apaixonado. Essa não é a
praia do escritor João Pires da Gama, de 25 anos. Pelo menos não na obra
“Para todos os corações selvagens” (Editora Multifoco), escrita durante
uma de suas internações psiquiátricas — foram dez ao todo, desde os 15
anos. O jovem, que sofre de bipolaridade, síndrome de Borderline e
depressão crônica, fala com naturalidade desconcertantes sobre seus
transtornos, os abusos sexuais que sofreu e suas viagens ao inferno da
bebida e das drogas. Há três meses de alta, ele garante que hoje os seus
vícios são apenas o cigarro e a Coca-Cola.
— Hoje em dia eu estou estável, me tratando com remédios. Foi difícil
chegar até aqui — afirma ele, lembrando que o livro foi escrito após uma
tentativa de suicídio — Escrevi cerca de cem poemas ao todo e escolhi
alguns para publicar. Quis mostrar, com a poesia, aquilo que não se
fala. Os demônios, os caminhos tortuosos da vida, a obscuridade da alma,
a dor, o sofrimento.
No poema que abre a publicação e que dá nome ao livro, João diz: “Eu e
meu coração selvagem. Que bela dupla nós somos. Eu pego um táxi sem
dinheiro. Eu bebo, eu bebo, eu bebo. (...) Eu e o meu coração selvagem. E
o gosto por viver intensamente. Em todas as horas eu ardo. Todos os
dias, todos os dias... E à noite eu padeço. Em pedaços, sempre em
pedaços (...)”.
— Meus textos trazem imagens e sensações. Foram feitos para mexer com os
sentidos mesmo. Além da dependência, falo de outros temas como
prostituição, ocultismo e agnosticismo — explica.
Morador do Leme, João escolheu o bairro por ter uma história com aquela
que é sua musa inspiradora: Clarice Lispector. Ele conhece o endereço em
que a escritora vivia (Rua Gustavo Sampaio 88) e sabe de cor frases e
citações inteiras da escritora.
— Clarice é minha Bíblia. Já li todos os livros. Num de seus textos ela
diz que gostaria de ter um filho chamado João. Daí eu penso: será que
sou eu? — pergunta ele, enquanto acende mais um cigarro.
No apartamento em que divide com a mãe e os gatos Frida e Noel, uma
impressionante biblioteca chama a atenção pela diversidade de obras. De
Clarice, é claro, passando por Baudelaire e Sylvia Plath, a livros de
tarô e I Ching, suas mais recentes paixões.
— Já estou até dando consultas. Sou meio bruxinho. Aliás, o I Ching está
bom para mim. Diz que eu vou atravessar grandes águas que vão me levar à
fortuna e ao sucesso — diz.
Nesse caldeirão em constante ebulição que é a mente do escritor, duas
novas obras estão em andamento: “A rainha solitária” e “O caçador". Por
meio de sua história e de suas escritas, João sabe que vai dar voz a
muitas pessoas que passam por problemas semelhantes.
— Quero mostrar que existe vida após uma experiência como essa. Desde
que a pessoa busque um chão, que encontre uma espiritualidade, uma força
superior. Não precisa escolher uma religião. Pode simplesmente
acreditar em si mesmo. Acho que sou um exemplo de sobrevivência e
esperança — comenta.
O Globo
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