O teólogo Kenner Terra, do Espírito Santo, teve
que lidar com uma enxurrada de críticas e comentários agressivos de
outros evangélicos quando publicou um texto defendendo o isolamento
social para combater o coronavírus.
Coordenador
do Fórum Evangelho e Justiça no Espírito Santo, Terra é pastor de uma
igreja batista que está entre as que defendem as medidas recomendadas
pela Organização Mundial de Saúde (OMSA) para evitar a disseminação da
covid-19.
Em contraste com líderes evangélicos conhecidos que
vieram a público criticar o isolamento e defender a abertura das
igrejas, diversos pastores das mais diferentes denominações defendem a
suspensão de cultos presenciais e estão disponibilizando cultos online,
enviando cartas e promovendo eventos e debates na internet sobre a
importância dos cuidados diante da pandemia.
"Mas é uma minoria", diz Terra. "Só de você estar considerando as
recomendações da OMS já é quase como um 'ato de resistência'", diz ele.
As
igrejas estão divididas. De um lado líderes que defendem o fim do
isolamento, a manutenção dos templos abertos e os cultos presenciais —
destes, alguns até entraram em disputa com o Ministério Público do Rio
de Janeiro pelo direito de manter as igrejas abertas. Do outro lados,
líderes que fecharam os templos, fazem cultos online e pedem para os
fiéis orarem em casa.
Para teólogos e sociólogos evangélicos
ouvidos pela BBC News Brasil, essa divergência sobre o coronavírus expõe
uma divisão nesse grupo religioso que se acentuou durante os últimos
anos, à medida que o presidente do país, Jair Bolsonaro, assumia, cada vez mais, uma "aura de autoridade religiosa".
Eles
dizem que, do lado dos que minimizam a ameaça da crise, estão, em
geral, grupos que se alinham com o projeto Bolsonarista e o acompanham
na forma de lidar com a pandemia; de outro, estão grupos que não
aderiram ao que Kenner Terra chama de "bolsoreligiosidade".
Mas a
situação embaralhou as divisões "clássicas" que normalmente se fazem dos
evangélicos — entre os grupos de heranças protestantes mais
tradicionais (como metodistas, batistas e presbiterianos) e os
neopentecostais e pentecostais (igrejas como a Assembleia de Deus e a
Universal).
Ou seja, não é possível separar a postura por tradição
religiosa — dentro desses segmentos há uma divisão. Na igreja
metodista, por exemplo, que em geral têm defendido o isolamento, há
líderes divergentes.
Alinhamento com Bolsonaro
Segundo uma
pesquisa recente do instituto Datafolha, os evangélicos continuam sendo
um dos setores onde Bolsonaro tem aprovação. E, embora a maioria dos
evangélicos no Brasil seja a favor das medidas de isolamento, o índice
dos que são contra o isolamento e acham que a população deve sair para
trabalhar (de 44%) é maior entre esses religiosos do que na população em
geral (37%).
"Penso que o alinhamento ao projeto de Bolsonaro tem
uma relação mais direta com a polarização entre conservadores (direita)
e liberais (esquerda)", explica o teólogo conservador Guilherme de
Carvalho, diretor do grupo de estudos L'Abri Fellowship Brasil e
ex-diretor de educação em direitos humanos do Ministério da Mulher,
Família e Direitos Humanos.
No entanto, ressalva, a crise do
coronavírus fez com que o apoio a Bolsonaro e às medidas de isolamento
não seja unânime nem entre os conservadores, afirma Carvalho, que também
é membro do conselho deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito e
Religião (IBDR).
"Posso dizer que há muitos conservadores
católicos e evangélicos que não estão de modo algum alinhados com
Bolsonaro na questão do coronavírus, tanto fora quanto dentro do
governo, inclusive", diz ele, que deixou o ministério no mês passado.
Líderes
da igreja Batista de Lagoinha, por exemplo, frequentada pela ministra
Damares Alves, ao mesmo tempo que apoiaram o dia de jejum convocado por
Bolsonaro ("para que o país fique livre desse mal"), têm feito cultos
online, chamando os fiéis para ficarem em casa e criticado pastores que
não fazem o mesmo.
"A covid-19 rachou o suporte evangélico
transversalmente, em todas as denominações, excetuando-se as mais
autocráticas (centradas na figura de líderes religiosos específicos)",
afirma Carvalho.
Fator Moro
Outro fator recente que evidenciou a divergência entre as igrejas foi o pedido de demissão do ex-ministro da Justiça Sergio Moro.
A
saída de Moro foi vista com desaprovação por boa parte da comunidade
evangélica, explica Carvalho, que vê Moro como símbolo de combate à
corrupção.
"Muitos ficaram bem desgostosos com esse processo todo,
fazendo com que a posição de muitos evangélicos tenha se movimentado um
pouco mais para a oposição", diz ele.
Até líderes que fazem parte
da base mais fiel de apoio ao presidente — como o pastor Silas Malafaia
— criticam a saída do ministro.
E entidades importantes e
normalmente próximas ao governo Bolsonaro, como a Associação dos
Juristas Evangélicos (Anajure), viram com descontentamento a saída do
ministro. A Anajure emitiu uma nota de repúdio à "interferência do
presidente na direção-geral da Polícia Federal".
No entanto, muitos pastores ainda se mantém fiéis à "bolsoreligiosidade".
Líderes midiáticos
A
pesquisadora metodista Magali Cunha, do grupo Comunicação e Religião da
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
(Intercom), explica que são esses líderes mais "midiáticos"— nomes como
Silas Malafaia (da Assembleia de Deus Vitória em Cristo) e Edir Macedo
(Igreja Universal do Reino de Deus) — que têm sido os mais vocais na
crítica às medidas de isolamento e mais negacionistas em relação à
ameaça representadas pelo coronavírus.
Macedo compartilhou um
vídeo em que dizia que o coronavírus não era uma grande ameaça. "Meu
amigo e minha amiga, não se preocupe com o coronavírus. Porque essa é a
tática, ou mais uma tática, de Satanás" dizia ele.
A Frente Parlamentar Evangélica também defendeu que as igrejas fiquem abertas.
"É
fundamental que os templos, guardadas as devidas medidas de prevenção,
estejam de portas abertas para receber os abatidos e acolher os
desesperados", disse o grupo em nota emitida há algumas semanas.
"A fé ajuda a superar angústias e é fator de equilíbrio psicoemocional", afirma a bancada.
A
BBC News Brasil tentou falar com o presidente da bancada, o deputado
Silas Câmara (Republicanos-AM), e com líderes religiosos contrários ao
fechamento dos templos, mas não obteve resposta.
A Igreja
Universal disse em nota que serviços religiosos foram considerados
essenciais por decreto presidencial e que está tomando medidas de
"cautela sanitária", como oferecer álcool em gel e pedir para que os
fiéis sentem longe uns dos outros nos locais onde os cultos ainda estão
sendo realizados — eles foram suspensos nos Estados que os proibiram.
"Nas
localidades onde está proibida a realização de cultos em templos
religiosos, a Universal está aberta apenas para orações individuais e
auxílio espiritual, e observando todas as cautelas sanitárias", diz a
igreja.
"Percebe-se que um dos principais grupos que estão contra a
medida (de isolamento social) são igrejas sem uma organização mais
coletiva, governadas por líderes únicos com uma liderança mais
personalistas — figuras sempre envolvidas em polêmicas que acompanham
politicamente as orientações do presidente", afirma Cunha.
O
próprio presidente, dizem os teólogos, acabou se transformando em uma
figura de "autoridade religiosa", capaz de influenciar o posicionamento
de pastores e fiéis.
Guilherme de Carvalho considera que esse fator é a principal motivação dos grupos contrários ao isolamento social.
"Bolsonaro
claramente tem uma aura de autoridade religiosa. Essa aura foi
evidentemente cultivada e explorada na 'Santa Convocação' ao jejum do
dia 5 de abril, com um vídeo bastante divulgado em redes sociais com
palavras de apoio de importantes lideranças evangélicas", afirma
Carvalho.
Apoiaram o jejum lideranças importantes das mais
variadas denominações religiosas: as igrejas Sara Nossa Terra, Mundial
do Poder de Deus, Renascer em Cristo, Presbiteriana do Brasil,
Quadrangular do Reino de Deus, Batista Getsêmani e outras igrejas
batistas.
"Essa autoridade foi conferida pelas próprias
autoridades religiosas, embora, a essa altura, tenha ganhado certa
independência", diz ele.
Nesse contexto, explica, Bolsonaro é
visto como representante de certos valores morais caros a esses grupos e
qualquer oposição a ele é vista como sendo feita por "inimigos da fé".
"É
o voto de confiança turbinado pela religiosidade", diz ele, para quem
esse apoio também é perpassado por um temor entre os conservadores de
que "o enfraquecimento de Bolsonaro permita a ascensão da esquerda".
"É
o que eu chamo de 'bolsorreligiosidade', que tem em Bolsonaro uma
figura sagrada, a fala dele representa a leitura de mundo que deve ser
seguida", explica Kenner Terra.
"Há uma tendência de tornar esse
apoio ao Bolsonaro em um ato piedoso: é óbvio que apoiá-lo é defender a
família, quem não o apoia é inimigo, não é ouvido, precisa ser
exorcizado e silenciado."
"Bolsonaro identificou que precisava do
apoio dos evangélicos nas eleições e certos grupos evangélicos
perceberam que poderiam usar isso para conseguir benefícios", explica.
"É preciso lembrar que muitos desses religiosos apoiaram Dilma e Lula
quando foi conveniente", afirma.
Carvalho vê uma origem diferente
para essa autoridade que acabou sendo conferida ao presidente — uma
espécie de vácuo de autoridade que o político soube aproveitar.
"Suas
raízes estão, naturalmente, na necessidade de uma representação
política que considere alguns valores cristãos importantes, como a
família, a justiça, a honra a autoridades e a símbolos que promovam
coesão social, e que deixe de marginalizar a voz cristã, erro
sistematicamente cometido em governos anteriores", diz ele.
"Bolsonaro,
corretamente, se lembrou de que existem milhares e milhares de igrejas
no Brasil. Levou a sério os argumentos em favor da liberdade de religião
ou crença, e as proteções especiais que essas liberdades recebem na
Constituição Federal. Na verdade esse é um ponto a favor de Bolsonaro, e
não contra", afirma Carvalho.
Carvalho defende o isolamento
social como forma de combater o coronavírus, mas afirma que as
autoridades estaduais e municipais, o Ministério Público e a imprensa
não "compreendem a importância histórica e social da liberdade
religiosa" e que muitos desses grupos estão com medo de perderem a
liberdade de culto.
"Se alguém deseja enfraquecer a forma
caricatural de conservadorismo representada por Bolsonaro, existe um e
apenas um caminho: abrir diálogo com as igrejas evangélicas", diz ele.
Questão econômica
Segundo
os analistas, há um setor, que inclui esses líderes, para quem a
questão econômica é uma das motivações para a hesitação diante das
medidas de isolamento.
"Há um medo das igrejas, porque a entrada
financeira acontece principalmente nos cultos presenciais, há o risco da
entrada ser menor, e há uma série de compromissos financeiros, aluguel
dos templos, salários dos pastores, etc" afirma Kenner Terra.
"Em
uma reunião que fui com o governador do Espírito Santo, 70% dos pastores
tinham isso como principal preocupação, perguntaram se o Estado iria
dar ajuda financeira para as igrejas."
"Não é diferente dos
grandes empresários brasileiros que estão pedindo o fim do isolamento, é
uma questão de fundo econômico. Eles vivem disso, não querem perder
mercado. (O isolamento) interfere na estrutura de recolhimento de
oferta", afirma o sociólogo Clemir Fernandes, do Instituto de Estudos da
Religião (Iser).
Magali Cunha diz que "não podemos colocar na
mesma balança" grandes conglomerados de igreja que possuem bens,
influência política e até meios de comunicações, com igrejas menores,
que funcionam com base nas doações do dia a dia.
"Muitas vezes é
uma igreja que funciona em uma lojinha, em uma garagem, essas
neopentecostais que surgem a rodo. Não podem ser comparados com esses
líderes que têm compromissos públicos com uma agenda bolsonarista", diz
ela.
"É verdade que alguns líderes de grandes igrejas tem feito
muita pressão para manter abertas as igrejas, e pelo menos em alguns
casos podemos especular que isso tenha relação com a sustentação
financeira dessas igrejas. De certo modo, não difere muito do argumento
de alguns empresários", afirma Guilherme de Carvalho.
"Mas tenho a
impressão de que, para a maior parte das pequenas congregações, essa
realmente não é a grande questão. Ouvi falar pouco sobre isso, entre
pastores. A maior preocupação parece ser mesmo a ameaça à liberdade de
culto", diz ele.
Pastores preocupados com a disseminação do
coronavírus dizem que a solução para cumprir os compromissos econômicos é
receber doações de outras formas, e que, embora legítima, essa
preocupação não pode passar na frente da segurança e da vida.
Muitas
doações têm migrado para a internet. A plataforma EuIgreja, que permite
que os fiéis contribuam virtualmente, teve um aumento de 600% em
inscrições de igrejas nas últimas três semanas, segundo Rafael Lazzaro,
um dos sócios. Já são mil comunidades religiosas inscritas, incluindo a
Igreja Metodista, a Igreja do Narazeno e a Assembleia de Deus.
Essa
questão já levou inclusive a rusgas públicas entre líderes religiosos
importantes. A pastora Ana Paula Valadão, da Igreja de Lagoinha,
criticou pastores que não fecharam as portas e sugeriu que eles façam a
coleta das doações pela internet. "Tá com medo de perder o quê?
Arrecadação financeira?", disse ela.
Isso gerou uma resposta de
Silas Malafaia. "Nunca cobrei um centavo para pregar o Evangelho", disse
ele, que qualificou a crítica das pastora como uma "fala do inferno no
nosso meio" e afirmou que "a igreja é o último reduto" das pessoas em
tempos de crise.
Alas progressistas
Entre as igrejas
evangélicas, os primeiros a defender o isolamento e transferir os cultos
e estudos bíblicos para a internet foram os chamados grupos
"progressistas", não alinhados ao presidente.
O pastor Henrique
Vieira, líder religioso de esquerda visto no Rio de Janeiro como um
"anti-Malafaia", tem feito toda sua pregação pela internet e veio a
público criticar o jejum proposto pelo presidente.
"Abstinência de
alimentos não parece o mais razoável em tempos de fortalecer nossa
imunidade", diz ele, que fez um vídeo para explicar "o verdadeiro
sentido do jejum religioso".
"A gente identifica claramente que as
igrejas que apoiam as medidas preventivas são as que têm como base
teológica do compromisso social" afirma Magali Cunha. "Historicamente
trabalham temas como responsabilidade cristã, fazem trabalho social, têm
uma preocupação de responder as demandas que surgem da sociedade."
O pastor Ricardo Gondim, da Igreja Betesda, em São Paulo, tem feito alertas diários no Twitter sobre os perigos da pandemia.
"Precisamos,
urgente, dar nome, mostrar foto e contar a história das pessoas que
morreram de covid", escreveu na quarta-feira (22). "Enquanto a discussão
ficar nas futricas do Palácio e os números forem estatísticas frias,
mais pessoas se manterão indiferentes."
Kenner Terra lamenta que a
ala progressista da igreja evangélica tenha menos visibilidade. "São
grupos menores, menos articulados e também que não são donos de grandes
meios de comunicação", afirma. "Também é difícil você juntar pessoas
muito críticas."
Fé e ciência
No vídeo em que duvida da
gravidade do coronavírus, o pastor Edir Macedo mostra o trecho de um
vídeo de um médico patologista que contraria a comunidade científica, o
Ministério da Saúde e a OMS e diz que "de coronavírus a gente não
morre".
"Fica aí o recado do doutor, que é cientista e tem
fundamentos científicos para falar o que ele falou com certeza", diz o
líder religioso no vídeo.
Mais de 210 mil pessoas já morreram por causa do covid-19 no mundo, mais de 4,5 mil delas no Brasil.
Para
o sociólogo Clemir Fernandes, do Iser, o fato de muitos dos argumentos
de religiosos e mensagens compartilhadas nas redes sociais trazerem
supostos dados científicos, pesquisas e nomes de pesquisadores (muitas
vezes incorretamente), mostram que o que existe não é uma descrença da
ciência em si, mas uma tendência a acreditar somente naquilo que
confirma uma visão já existente.
"Muitas das pessoas que defendem o
uso da cloroquina (remédio que está sendo testado e ainda não tem
eficácia comprovada) compartilham pesquisas que foram feitas com a
substância, por exemplo", diz ele. "Se fosse uma descrença total por
causa da religião, isso não aconteceria."
Ou seja, é problema
muito mais de posicionamento político e ideológico do que a dificuldade
em encaixar a ciência com a espiritualidade.
Para Guilherme de
Carvalho, o fato de a "atitude leviana em relação à opinião científica e
acadêmica" por parte do presidente não enfraquecer o suporte a
Bolsonaro pode ter relação com o fato de a comunidade acadêmica
"conversar pouco com a religião brasileira".
Segundo ele, isso "contribui perversamente para que a religião opere como referência única de verdade".
"Nesse
deserto sem respeito a autoridades e sem cooperação, florescem teorias
conspiratórias e o espírito do populismo. Assim, entre um líder político
'ungido' pelos líderes religiosos, e uma academia e uma imprensa que
sempre jogam contra a fé, o povo tenderá a seguir esse líder político",
afirma.
"Eu diria que o desprezo à opinião científica que se
tornou tão gritante nas últimas semanas foi intensificado por uma
inimizade desnecessária entre fé e ciência do qual os culpados são tanto
a universidade Brasileira quanto os líderes religiosos evangélicos",
afirma.
com informações UOL
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