Muito ainda será pesquisado e analisado o apoio religioso à eleição
de Jair Bolsonaro e sobre ele ser o primeiro candidato, em campanha e
depois da vitória, com um discurso identificado como cristão,
marcadamente evangélico.
O capitão foi vitorioso entre cristãos, com peso maior entre os
evangélicos. A estimativa é de 69% dos votos deste grupo, segundo
pesquisa Datafolha de 25 de outubro. Neste ponto, há que se considerar
que, apesar de se declarar católico, Bolsonaro tem alianças estreitas
com políticos e outras lideranças evangélicas.
Seria muito raso atribuirmos a vitória significativa de Bolsonaro entre
evangélicos à publicidade em torno da fé cristã, cristalizada no slogan
de sua campanha “Deus acima de todos”.
Ou ainda às falsidades disseminadas sobre uma vitória do seu oponente
Fernando Haddad ameaçar a existência das famílias e das igrejas. É fato
que são componentes significativos na persuasão de fiéis, mas é
importante também considerar outros elementos, como o perfil
socioeconômico do segmento.
Segundo os dados do IBGE, boa parte dos evangélicos vive em áreas
urbanas e periféricas e em grande medida entre a população pobre e de
baixa renda.
Neste contexto, independentemente de religião, está o sofrimento
consequente das ações violentas de facções do crime organizado, das
milícias e das polícias. As propostas imediatistas e vingativas da
campanha de Bolsonaro para pôr fim à violência urbana possivelmente
encontraram abrigo nesta população sofrida.
É preciso considerar, no entanto, os elementos do mundo e da cultura
evangélica que parecem determinantes para a adesão ao bolsonarismo. Um
deles é a moralidade sexual alimentada pela teologia protestante
puritana, que descarta a dimensão da corporeidade e da sexualidade
relacionada à realização plena do indivíduo e ao prazer, e a classifica
como pecado e desvio do objetivo maior, a formação das famílias para
procriação.
O resultado é a submissão da mulher ao poder do homem/patriarca (pai,
marido, irmãos, tios, filhos, pastor), a repressão do corpo e a
condenação da homoafetividade.
O mote da campanha pela “salvação da família”, contra a suposta ditadura dos governos do PT e seu “kit-gay”,
certamente obteve ressonância no segmento evangélico. Por mais que se
desmentisse a distribuição de um “kit-gay” pelo PT de Haddad e se
explicasse o projeto da Câmara dos Deputados, apoiado pela Unesco, de
produção de um material para adolescentes para a superação da homofobia
nas escolas, o “clique” na elaboração mental e emocional do imaginário
evangélico puritano e moralista havia sido acionado.
Este aspecto está relacionado a outro muito fortemente presente no
imaginário evangélico, o combate a inimigos. A teologia de um Deus
guerreiro e belicoso, o Senhor dos Exércitos, sempre esteve presente na
formação fundamentalista dos evangélicos brasileiros, compondo o seu
imaginário e criando a necessidade da identificação de inimigos a serem
combatidos.
Exércitos precisam de inimigos. Historicamente a Igreja Católica Romana
sempre foi identificada como tal e combatida no campo simbólico e
também no físico-geográfico. Da mesma forma, as religiões
afro-brasileiras também ocupam este lugar, especialmente no imaginário
dos grupos pentecostais. O comunismo e seus derivativos são outra forte
expressão inimiga desde os anos 1940, com altos e baixos na escala
imaginária.
Desde 2010, quando emergiu intensa oposição de líderes evangélicos à
candidatura de Dilma Rousseff, muito por conta das pautas progressistas
que ela defendia e que integravam a terceira versão do Plano Nacional de
Direitos Humanos, aprovado em 2009, estava atualizado o grande inimigo a
ser combatido: cidadãos, grupos e partidos defensores da justiça de
gênero, considerados ameaças à família e à moralidade sexual evangélica.
Somam-se a este elemento os quase 30 anos de cultura gospel,
construída via tríade música, mercado e entretenimento, disseminada
pelas mídias religiosas e seculares, que tem como uma de suas âncoras
teológicas e doutrinárias a “guerra espiritual”.
O gospel tem comunicado e ensinado que inimigos da fé, encarnações
das potestades do mal, devem ser constantemente combatidos, e eles
assumem as identidades bem concretas aqui listadas.
Canções como “O nosso general é Cristo... nenhum inimigo nos
resistirá...” foram e ainda são frequente e repetidamente cantadas em
boa parte das igrejas, numa educação não-cristã para a eliminação dos
diferentes e dos discordantes.
Este discurso se alinha diretamente àquele pregado por Bolsonaro em
sua cruzada moral e bélica. Sem falar no discurso autoritário do
capitão, que encontra identificação com posturas de autoridades no mundo
evangélico, mas isto é tema para outro artigo.
Há ainda muito o que refletir, mas uma coisa é certa. A minoria
evangélica que sempre trafegou na contramão desta onda necessitará de
muita fé e perseverança. Precisará manter-se firme para ecoar a mensagem
da cruz, de doação, humildade, martírio e misericórdia, numa sociedade
marcada pela banalização da violência e por intensas expressões de
deterioração das relações humanas nas próprias igrejas.
por Magali do Nascimento Cunha - www.cartacapital.com.br
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