Certa vez, dois amigos me confidenciaram que
as empresas das quais eram sócios faziam de tudo para sonegar alguns
tributos. As empresas eram familiares e não admitiam o governo como
sócio. Um sócio como o governo, sustentavam, só tirava e nada dava.
Disseram-me também que o custo de arcar regularmente com toda a malha
tributária inviabilizava não apenas o lucro, mas a própria existência
das empresas.
Sonegação, pela lei, é crime. A imprensa, todos os
dias, dá-nos notícias e mais notícias sobre gente sendo presa por
esconder o quinhão ”do povo”. E a mesma imprensa, todos os dias, dá-nos
testemunho da eficiência implacável do governo em detectar e perseguir
aqueles que sonegam. A imprensa noticia os casos, os âncoras de jornal
fazem cara de reprovação e os colunistas eventualmente debatem o tamanho
da carga tributária.
A pergunta moral, no entanto, raramente é
feita: sonegar é, afinal, sempre errado? A resposta que ofereço é “não”.
Espero, neste pequeno texto, convencer o leitor de que o governo não
pode reclamar a parte de nossos recursos que é desperdiçada e de que não
há tal coisa como um dever absoluto de obedecer às leis. Não pretendo
discutir qual é o volume de carga tributária cuja cobrança seria
moralmente legítima, independente da qualidade do uso dos recursos.
Adiante.
Para começar, nem toda ação criminosa é imoral. De mais a
mais, se toda ação criminosa fosse imoral, a desobediência civil
justificada, tal como a famosa atitude de David Henry Thoreau, seria uma
impossibilidade conceitual. Isso, porém, é provavelmente falso. Mas
como meus amigos conseguiriam justificar moralmente sua sonegação? Eles
não poderiam usar a desobediência civil como justificativa, é claro.
Tipicamente, atos de desobediência civil são públicos e pretendem chamar
a atenção das pessoas para alguma iniquidade legal.
A sonegação
de ambos, como sabemos, é secreta. A última coisa que desejam é chamar a
atenção de quem quer que seja. Talvez um modo de justificá-la seja
pensar na legitimidade moral que o estado tem, se é que tem, para
tributar. Alguns filósofos sustentam que simplesmente não existe tal
legitimidade. Para eles, o uso de qualquer forma de coação para
transferir recursos não passa de violação de direitos. Robert Nozick,
por exemplo, ficou conhecido por ter defendido a teoria da titularidade,
que não admitia redistribuição. Para fins de argumentação, não vou
assumir aqui essa perspectiva (penso, no entanto, que ela é
perfeitamente defensável).
Qualquer discussão sobre a moralidade
dos tributos precisa lidar com dois aspectos distintos: 1) decidir se o
estado tem legitimidade para cobrá-los e, caso a resposta seja
afirmativa, 2) decidir quais são os critérios que o estado deve
satisfazer para efetivamente cobrá-los. Como já deixei claro, assumo que
1 já está resolvido. Tributar é legítimo. Segue-se, portanto, que os
pagadores de tributos não têm razão quando reclamam da cobrança de
tributos
em si.
No entanto, isso é só a primeira parte da
conversa. Se o estado não satisfizer os critérios exigidos pelo segundo
aspecto, a sonegação poderá ser justificada. Isso é assim porque se os
agentes do estado quiserem mesmo cobrar tributos, terão de ter boas
razões para fazê-lo. Tendo tais razões, precisarão usá-los bem. O mero
fato de terem legitimidade, em abstrato, para tributar, não os autoriza a
cobrar qualquer coisa sob qualquer justificativa. Tal autorização
também não existe quando, mesmo com boas razões para tributar, usam mal
os recursos obtidos.
Para tornar a ideia mais clara, pensemos nas
leis de modo geral. Aceitamos que o estado tem legitimidade para
elaborar leis. No entanto, exigimos – e temos o direito de fazê-lo – que
as leis satisfaçam critérios, como, por exemplo, a justiça e a
compatibilidade, quando aplicada, com os direitos individuais e o
interesse público. Se uma lei particularmente estúpida ou mal aplicada
os violar, um cidadão tem razões para não obedecê-la. Afinal, critérios
importantes sobre os quais qualquer lei deve se assentar para não foram
satisfeitos. Essa atitude, destaco, é compatível com a posição segundo a
qual o estado pode legitimamente elaborar leis.
O que dizer da
tributação? Aqui, um critério razoável é o de que, se não todo, mas
virtualmente todo o valor arrecadado por meio de tributos seja gasto em
prol da população. Infelizmente, no entanto, é uma verdade banal que
grande parte dos recursos arrecadados é desperdiçada. E uma vez que não
há legitimidade para a cobrança de uma quantidade qualquer de tributos
que muito provavelmente irá para o ralo, os pagadores podem sonegar essa
quantidade, digamos, moralmente (se a expressão “sonegar moralmente”
soa escandalosa, talvez isso se deva ao erro de assumir que uma
categoria jurídica negativamente carregada como o crime implica um juízo
negativo sobre o estatuto moral da ação em causa).
Para dar
alguns números, o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT)
divulgou em abril de 2013 que, entre os 30 países com as maiores cargas
tributárias, o Brasil é o que menos retorna à sociedade
proporcionalmente ao que arrecada (a “Folha”, há poucos dias, deu
notícia semelhante). Há algumas semanas, o economista Marcus Guedes, em
texto publicado no blog do jornalista Ricardo Setti, estimou que desde o
estabelecimento da Constituição
de 1988, o país pública uma média de 31 normas tributárias por dia. Já
em texto publicado no jornal “O Globo”, o jornalista Carlos Alberto
Sardenberg informa que, segundo pesquisa feita pelo Banco Mundial, o
sistema tributário brasileiro é o pior do mundo. Sardenberg também diz
que, em média, uma empresa brasileira gasta 2600 horas por ano só com
obrigações fiscais.
O que temos, então, é o seguinte: mesmo tendo
legitimidade para tributar, o governo não consegue satisfazer, em
parte, os critérios que deveriam ser satisfeitos para reclamar nossos
recursos. Como os tributos são estabelecidos por leis, sonegá-los nada
mais é do que não obedecer a leis, quando não estúpidas, mal aplicadas.
Portanto, a sonegação fiscal não é mais do que uma instância particular
da argumentação mais geral sobre as leis. E uma vez que tanto pessoas
físicas quanto jurídicas são lesadas pelo desperdício, cidadãos comuns e
empresários como os meus amigos têm justificativa moral para sonegar.
Pode-se,
é claro, oferecer objeções a atitudes como a dos meus amigos: vivemos
em uma democracia e nossas leis (inclusive aquelas que regem os
tributos) são feitas e aplicadas sob a égide de um regime que em tese a
todos representa. Assim, quem quer que desobedeça a uma lei, em uma
democracia, deve fazê-lo publicamente.
Tal objeção, no entanto,
enfrenta uma dificuldade. Os benefícios públicos desse tipo de
desobediência são, no mínimo, bastante intangíveis e de longo prazo, ao
passo que as consequências para o desobediente são imediatas e
palpáveis. Não me parece razoável afirmar que, para poder se defender da
sanha insaciável do nosso Leviatã, empresas (e também pessoas) devam se
prejudicar gravemente em nome de algo como o aprimoramento da
democracia. Pessoas não são meios, mas fins em si. Exigir a
desobediência pública é exigir que elas usem a si próprias em nome de um
fim político.
Consideremos duas últimas objeções e suas
respectivas respostas. O filósofo James Rachels formulou assim um
argumento em favor da ideia de que sempre devemos obedecer às leis: se
não obedecermos sempre às leis, o estado não pode existir. Seria
desastroso não haver estado, pois a vida seria muito pior sem ele.
Assim, conclui, devemos sempre obedecê-las. O problema desse argumento,
como sugere o próprio Rachels, é que desobedecer a um conjunto limitado
de leis não parece ser a receita para o caos social. Há também o
argumento do contrato social: se gozamos dos benefícios da cidadania,
então implicitamente fizemos uma promessa de obedecer às leis do estado.
O problema desse argumento é que não nos é oferecida uma razão para
obedecer a leis injustas, estúpidas ou mal aplicadas. Assumir que a
obediência a esse tipo de lei é “prática cidadã” é um abuso da
expressão.
Antes de encerrar, vale a pena considerar o seguinte:
suponhamos que uma pessoa saiba que parte dos recursos derivados de
tributos será desperdiçada. Qual é, do ponto de vista moral, a diferença
entre sonegar e procurar brechas legais que, bem usadas, permitem-na
pagar menos tributos? Pode-se responder que temos algo como um dever
prima facie de cumprir a lei. No entanto, em ambos os casos a ideia é a mesma: procurar meios de reter o que o governo usa mal. O dever
prima facie não faria mais do que sugerir um caminho seguro e aborrecido de alcançar o mesmo resultado. No entanto, deveres
prima facie podem ser derrotados por boas razões. E é defensável que o desperdício é uma excelente razão para a desobediência.
Fonte: direitoeliberdade.jusbrasil.com.br/
Por Aluízio Couto