A ministra do STF (Supremo Tribunal Federal) Cármen Lúcia criticou hoje a condução do combate à epidemia do novo coronavírus no Brasil por parte do poder público.
"O
que o Supremo disse é que a responsabilidade é dos três níveis
[federativos] — e não é hierarquia, porque na federação não há
hierarquia —- para estabelecer condições necessárias, de acordo com o
que cientistas e médicos estão dizendo que é necessário, junto com
governadores, junto com prefeitos. Acho muito difícil superar [a
pandemia] com esse descompasso, com esse desgoverno", afirmou Lúcia.
A ministra referia-se à decisão do STF de 15 de abril,
em que a corte estabeleceu que e estados e municípios tinham autonomia
para definir as medidas de combate à epidemia, como políticas de
distanciamento social. O julgamento foi considerado um revés para o
presidente Jair Bolsonaro (sem partido), contrário à adoção da quarentena como forma de impedir a propagação do coronavírus.
Para Cármen Lúcia, não é momento de politicagem, mas de política "no sentido clássico".
A política se faz com todo mundo, todos os cidadãos e para
todos os cidadãos. Não segundo a visão de um ou outro governante. Porque
isso vai resultar em mortes, e haverá responsabilidade por issoCármen Lúcia, ministra do STF
A
magistrada participou hoje de transmissão ao vivo do projeto "Conversas
na Crise - Depois do Futuro", organizado pelo Instituto de Estudos
Avançados (IdEA) da Unicamp em parceria com o UOL.
A
ministra Cármen Lúcia citou como exemplo a cidade de sua família, em
Minas Gerais, onde, segundo ela, não há respirador disponível.
"Vamos
convir que é o prefeito de lá, junto com aqueles da região, que têm de
chegar a um consenso. É muito diferente de outro lugar onde tenha
hospitais em melhores condições, como a realidade de São Paulo. O
interior do Amazonas é completamente diferente porque leva-se horas,
quando não, dias, para ter acesso a um lugar onde tem o mínimo de
condições de tratamento. Como é que se vai fazer isso em gabinetes de
Brasília, como se de lá se pudesse ver tudo e saber de tudo?"
Cármen
Lúcia, ex-presidente do STF, foi entrevistada por Carlos Vogt,
presidente do Conselho Científico e Cultural do IdEA; Marco Aurelio
Nogueira, professora da Unesp e colunista jornal "O Estado de S. Paulo" ;
e a colunista do UOL Constança Rezende.
Consenso no combate à covid-19
A
ministra do STF ainda defendeu a necessidade de consenso entre os
agentes públicos responsáveis pelas ações de combate ao novo
coronavírus. Para a ministra, a ausência de coordenação é uma "falha
gravíssima" e impede que o País esteja preparado para acolher aqueles
que estão em situação mais vulnerável ou de risco.
"Um Brasil como
o nosso, que não tem nem saneamento básico para todo mundo. As redes de
esgoto contaminadas, submetendo as pessoas às condições mais precárias.
Eu digo que é quase uma barbárie social. Não uma barbárie bruta da
força, mas outro tipo de violência. E é uma violência que ficou
escancarada com esta pandemia", disse.
Segundo Cármen, é
"imprescindível" que haja responsabilidade por parte do poder público,
que deve honrar e atender às instituições, mesmo que não concorde ou
"goste" delas.
Nós temos que ser republicanos porque a coisa
é de todo mundo. O Brasil não é de um grupo de pessoas em Brasília, é
de todos os brasileiros
A magistrada defendeu a construção
de uma "uma grande corrente de humanidade" no enfrentamento ao
coronavírus. "Ou vamos juntos nos salvar, ou vamos nos perder. Não
estamos no mesmo barco, estamos na mesma tempestade. Mas ela pode tragar
a todos ou vamos sair disso de maneira mais forte", disse.
Para
ela, o pensamento do filósofo iluminista Montesquieu, que teorizou a
separação dos Poderes, "está mais atual do que nunca: todo aquele que
detém o poder tende a dele abusar".
"Por isso, ele [Montesquieu]
propôs a separação de Poderes. Pelo andar das coisas, a natureza nossa é
essa. O freio ao poder quando se tem uma situação em que se tem um
discurso fácil de que se concentra poder para combater o mal, como se um
mal como esse da pandemia pudesse ser combatido por uma única pessoa,
pode até ser alimentado por comportamentos de uma ou outra pessoa, mas
não pode ser combatido sozinho por ninguém. Tem de ser combatido de
todas as formas de tratamento e cuidado com quem mais precisa. Por isso
nós temos uma Constituição, leis e juízes no Brasil."
Crise institucional
Ainda sobre a relação entre as instituições, a ministra do STF defendeu que não existe Poder acima do outro e reafirmou que as Forças Armadas não são um Poder. Ela respondia a uma pergunta sobre o artigo 142 da
Constituição, que regulamenta a atuação dos militares e, na
interpretação de bolsonaristas, atribui a eles as prerrogativas de um
Poder Moderador.
"As Forças Armadas têm tido comportamento, hoje,
desde a Constituição, muito coerente com as funções atribuídas de
resguardo do Estado brasileiro. Não da institucionalidade, nem de
moderação entre os poderes. Cumprem as funções que lhe são inerentes de
defesa da pátria, das fronteiras e, principalmente, sem nenhuma condição
de ser um quarto poder ou um poder moderador", disse Cármen Lúcia.
Nós não temos um poder acima dos outros, e nós só temos os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Não há outro
A
ministra do STF defendeu a atuação do Judiciário, frente à crise
política e institucional do país. "O importante é acreditar no
Judiciário, que a gente pode solucionar as coisas sem transgredir o
direito, sem botar abaixo a Constituição, sem deixar de cumprir as leis,
e sabendo que, como cidadão, você pode e deve participar para mudar as
leis que não representem mais o sentido de justiça segundo o qual você
quer viver", avaliou.
"De tudo que nós tivemos nestes 30 anos, eu
noto em aluno, taxista, pessoas que não têm nenhum conhecimento
jurídico. Acho que isso mudou para melhor. Eu acho que a sociedade brasileira não aceita o escárnio, não aceita o cinismo", acrescentou.
Cármen
afirmou que se referia à sociedade não abstratamente, não à sociedade
ícone. "Mas o conjunto de cidadãos que teve e tem de manter a esperança
porque, sem ela, não dá, definitivamente, para a gente continuar a ter
alguma força para vencer as dificuldades e os desafios."
Supremo na política
Questionada sobre críticas que o STF e
outros tribunais recebem por judicializarem a política, a ministra do
respondeu que a Corte "não entra em todos os assuntos", mas às vezes é chamada e obrigada a participar de determinadas discussões, como o financiamento de campanhas eleitorais.
"Se
houver judicialização [na política], ela é levada pelos agentes
políticos ou cidadãos. O Judiciário, diferente do Legislativo e do
Executivo, só age mediante provocação. Às vezes vejo pessoas dizendo que
o Supremo entra em todos os assuntos. O Supremo não entra, é chamado e é
obrigado a se manifestar", disse.
Para a ministra, a "culpa" pela
judicialização da política recaiu sobre o Supremo porque a corte tem
atuado mais, enquanto o que acontece nos tribunais estaduais "não é nem
notado". "Nós já chegamos a ter, no início da década passada, mais de
120 mil processos em tramitação no STF", lembrou.
Inquérito das fake news
A ser questionada sobre o seu voto no julgamento da legalidade no inquérito das fake news, conduzido pelo STF para investigar ataques aos ministros da corte e a seus familiares, Cármen Lúcia afirmou que não se pode permitir abusos em nome da liberdade de expressão.
"Como
eu disse no meu voto da semana passada, liberdade de expressão é artigo
de primeira necessidade. Se tivesse uma cesta básica de direitos
fundamentais, o elemento fundamental seria exatamente a liberdade de
expressão e liberdade de imprensa", prosseguiu.