A ascensão das forças políticas oriundas do segmento evangélico no
Brasil – em franca expansão desde o início dos anos 2000 – é um fator
importante para a compreensão do movimento que resultou na eleição de
Jair Bolsonaro. Porém, na visão do professor Roberto Romano, o
crescimento dos evangélicos é uma ameaça ao Estado laico.
Romano é professor de Ética e Filosofia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e
produziu um artigo fazendo associação da presença evangélica na política
à dominação católica no Brasil nos séculos em que o país foi colônia de
Portugal e também durante a fase do Império, quando o catolicismo era a
religião oficial, embora se permitisse a adesão a outras crenças.
“Com Bolsonaro quebra-se o elo entre ordem eclesial e sociedade
civil. Desde 1500 o catolicismo teve hegemonia nos assuntos do Estado.
Ainda agora majoritário, ele foi decisivo no controle ético e político
do Brasil. A partir do século 20 sua importância diminui e hoje ele
enfrenta movimentos evangélicos que aplicam, para se expandir,
estratégias do moderno marketing“, contextualizou o professor.
Segundo Romano, “nossa terra não gerou a República sonhada pelos que,
desde a colônia, lutam por um país livre e laico”. Com a chegada de
Bolsonaro à presidência, o professor entende que “sai o mando
teológico-político católico, igual pretensão protestante bate às
portas”.
Indicando apreço ao secularismo, o professor diz que “desde o
Renascimento a Igreja [Católica] se coloca contra os regimes de
liberdade e democracia”, e sugere que os evangélicos seriam atores com
iguais pretensões. “Ao reagir à Reforma [Protestante] ela definiu uma
pauta contra o âmbito secular”, acrescenta o professor, que lista, em
seu artigo, diversas iniciativas de oposição eclesiástica à “modernidade
e ao liberalismo”.
“No Brasil, Rui Barbosa luta em prol do Estado laico […] desenvolve
as bases jurídicas que separam os campos religioso e político”,
recapitula Romano, referindo-se à atuação do jurista nos anos que
precederam Constituição de 1891, que instituiu a conceito de laicidade
ao Estado brasileiro, dois anos depois do golpe militar que derrubou o
Império e instituiu a República.
O professor – autor do livro Razões de Estado e outros estados da Razão
– pontua que “a Igreja, antes base do poder, é reduzida à forma
privada”, o que não foi bem aceito pelas lideranças religiosas à época:
“As pressões católicas para retomar o status anterior à Carta de 1891
levaram-na a apoiar a ditadura Vargas, na qual obteve vitórias. A
presença católica na educação foi estratégica”, recapitulou.
A ditadura de Getúlio Vargas permitiu, segundo o professor, que os
católicos continuassem sua “luta contra o modernismo, o liberalismo, o
protestantismo e outros ismos odiosos à hierarquia”.
Toda essa revisão histórica feita pelo articulista deságua na
especulação de que os evangélicos brasileiros pretendem emplacar uma
hegemonia que traria riscos ao Estado laico: “Hoje o país está perto de
nova aliança entre sacerdotes e políticos. O presidente eleito proclama
não sermos um Estado laico, mas cristão (sic). Importa recordar que as
sementes teológico-políticas foram disseminadas pela Igreja Católica. Os
evangélicos aproveitam o solo adubado, em séculos, pelos integristas,
que sorvem o próprio remédio aplicado por eles à vida nacional”, critica
Roberto Romano.
As incertezas da vida brasileira, no instante em que assume um
governo incerto no plano religioso, exigem cautela. Com Bolsonaro
quebra-se o elo entre ordem eclesial e sociedade civil. Desde 1500 o
catolicismo teve hegemonia nos assuntos do Estado. Ainda agora
majoritário, ele foi decisivo no controle ético e político do Brasil. A
partir do século 20 sua importância diminui e hoje ele enfrenta
movimentos evangélicos que aplicam, para se expandir, estratégias do
moderno marketing. Mas o modelo de tal proselitismo foi a Propaganda
Fidei (1622, obra jesuítica). Nossa terra não gerou a República sonhada
pelos que, desde a colônia, lutam por um País livre e laico. Sai o mando
teológico-político católico, igual pretensão protestante bate às
portas. Inglaterra, França, Estados Unidos, parte dos países civilizados
definiram as balizas da liberdade ao separar Igreja e Estado. Aqui a
fachada sobrenatural integra governos à esquerda ou direita.
Para garantir semelhante dinâmica o catolicismo foi essencial.
Desde o Renascimento a Igreja se coloca contra os regimes de liberdade e
democracia. Ao reagir à Reforma ela definiu uma pauta contra o âmbito
secular. Trento marcou a plataforma reativa diante do mundo moderno,
algo que permaneceu até o Concílio Vaticano II. Uma idiossincrasia da
forma romana foi o veto à modernidade e ao liberalismo. Até o século 20
cátedras universitárias católicas exigiam dos professores o juramento
contra as ideias laicas. Dizia Pio X no Motu Proprio Praestantia: “Os
modernistas são os piores inimigos da Igreja, o modernismo é reunião de
todas as heresias” (1907). Desde o Syllabus (1864) a guerra contra os
“erros” do Estado e da sociedade civil é movida pela Santa Sé, que exige
adesão incondicional do clero e dos leigos. O juramento contra as
doutrinas liberais modernas encontra-se no Motu Proprio Sacrorum
Antistitum (1910), do mesmo Pio X.
Já na era das Luzes Clemente XIII escreveu um rascunho de
encíclica (Quantopere Dominus Jesus), onde reafirmava que o desejo de
verdade é natural no homem. Mas tal anelo “o Espírito Santo quer
refrear, como prova o Eclesiastes”. O pontífice ordena que os fiéis se
abstenham de pesquisas sobre o saber científico. Tal mote atravessa o
ensino da Igreja do Index Librorum Prohibitorum (1559, só abolido em
1966) aos acordos com Mussolini e Hitler. O alvo maior foi atenuar a
prática política autônoma dos católicos. A Concordata com o governo
hitlerista impediu a ação política das forças religiosas. Mesmo os
conservadores do Zentrum tiveram diminuída, pelo Vaticano, sua ojeriza
ao totalitarismo.
Os liberais católicos da Alemanha e do mundo, desde o século 19,
são derrotados pelo setor ultramontano. Este reforça o mando absoluto do
papa e gera o dogma da infalibilidade, o que impede todo diálogo ou
ação conjunta de católicos e liberais. No Brasil Rui Barbosa luta em
prol do Estado laico, escreve um prefácio (mais longo do que o livro
original) ao volume de Johann Joseph Ignaz Dollinger O Papa e o
Concílio, 1877. O civilista desenvolve as bases jurídicas que separam os
campos religioso e político. Ele antecipa a Constituição de 1891, que
ordena: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer
publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e
adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum (…). A
República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita
(…). Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela
autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a
prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não
ofendam a moral pública e as leis. (…). Será leigo o ensino ministrado
nos estabelecimentos públicos. (…) Nenhum culto ou igreja gozará de
subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o
Governo da União, ou o dos Estados”.
Para notar a diferença entre o afastado na Carta e as formas
institucionais anteriores, tomemos a Constituição de 1824: “A religião
católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas
as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou
particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de
templo” (citado por F. S. L. Azevedo Ferreira: A liberdade religiosa nas
Constituições brasileiras e o desenvolvimento da Igreja Protestante).
Cemitérios abertos a todos (só aos católicos eram eles reservados),
educação laica (a religião omitida dos bancos escolares). A Igreja,
antes base do poder, é reduzida à forma privada. As pressões católicas
para retomar o status anterior à Carta de 1891 levaram-na a apoiar a
ditadura Vargas, na qual obteve vitórias. A presença católica na
educação foi estratégica.
E segue sob Getúlio a luta contra o modernismo, o liberalismo, o
protestantismo e outros ismos odiosos à hierarquia. E logo as cruzadas:
da boa imprensa, do bom cinema, da LEC, a Liga Eleitoral Católica, a
reunião de “autoridades civis, militares, eclesiásticas”. Em congressos
eucarísticos a Igreja exige privilégios (Romualdo Dias, Imagens de
Ordem, a doutrina católica sobre autoridade no Brasil, 1922-1933). Como a
França, o Brasil é consagrado à soberania espiritual com o Cristo
Redentor. Com Vargas brotam as censuras, os processos torcionários, os
exílios (os administradores do jornal O Estado de S. Paulo
passam por eles), os atentados aos direitos humanos (Sobral Pinto evoca
a lei de proteção dos animais em defesa de Prestes). Tais vilipêndios
escapam à atenção católica. Importa vencer a modernidade, o liberalismo,
o socialismo.
Hoje o País está perto de nova aliança entre sacerdotes e
políticos. O presidente eleito proclama não sermos um Estado laico, mas
cristão. Importa recordar que as sementes teológico-políticas foram
disseminadas pela Igreja Católica. Os evangélicos aproveitam o solo
adubado, em séculos, pelos integristas, que sorvem o próprio remédio
aplicado por eles à vida nacional.