47 milhões de votos depois, ex-postulante à Presidência fala sobre a crise no MEC e os primeiros meses do governo Bolsonaro.
“Onde o Brasil constitui massa crítica? Na universidade pública. O
pensamento nacional está na universidade pública, por isso que é sempre
escolhida como alvo da direita. É de lá que sai o pensamento sobre
soberania popular, soberania nacional, sobre visão estratégica do país. É
lá que se forja uma visão coletiva de futuro.
Quando você tem um governo que é entreguista, é contra a
soberania popular e nacional, um governo intimidatório de minorias
políticas, há toda razão para esse governo ter medo das federais.
Eu acho que eles ainda estão tateando como vão fazer com as
universidades o que estão fazendo com a imprensa, por exemplo. Não é
diferente.
Uma coisa é você criticar a imprensa, outra coisa é intimidar, que é o
que o governo está tentando fazer por meio das redes sociais. O próprio
presidente dando nomes a serem atacados pela sua matilha virtual”.
“A ignorância do mandatário do país realmente choca os que dedicaram
uma vida a estudar o Brasil. Ele desconhece praticamente todos os
assuntos. Estamos falando de uma das pessoas menos qualificadas para o
cargo que se podia imaginar”.
“A tentativa do Governo é de criar uma maioria tirânica pra tratar a
minoria mais ou menos na chave do amigo-inimigo, que é um clássico dos
governos de extrema-direita. A extrema-direita não tolera contestação,
vinda de onde vier: imprensa, universidade, classe artística, comunidade
científica. Tudo o que contesta o poder é tratado como inimigo”.
“O ultra neoliberalismo do Guedes quase que necessita de um
complemento obscurantista pra poder passar. Eu entendo que essa agenda
obscurantista é parte do enredo, tem um caldo de cultura que acaba
contribuindo para um programa econômico ultra neoliberal”.
“Eu vejo espaço para uma reorganização político-partidária no Brasil,
depois da hecatombe que aconteceu entre 2013 e 2018. Mas não vai ser em
cinco semanas que você vai pôr ordem em cinco anos de delírio. Isso
leva um tempo e trabalho sério, capacidade de organização”.
“Eu entendo que existe uma frustração. Tem toda uma decantação de
narrativas que está acontecendo, vai levar um tempo, mas eu penso que o
PT ainda é o instrumento da classe trabalhadora. Sem o prejuízo de
reconhecer mérito em outras agremiações, eu penso que o PT é ainda o
partido mais forte da centro-esquerda, em função do legado que deixou
pra população mais frágil economicamente do país”.
“A diferença do Bolsonaro pro Lula é a diferença da mitomania pra mitologia. Um é um mitômano, o outro é mitológico.
Nós estamos nesse impasse de ter uma liderança da qualidade do Lula
encarcerada, e o resultado disso tudo ocupando a Presidência de
República.
O Lula vive as dores. Quando perdeu a Marisa, o irmão, o neto, quando
nós perdemos a eleição; ele vive aquela dor. O que impressiona não é
isso. O que impressiona é a capacidade dele de se recuperar de
sucessivas dores”.
“O governo Bolsonaro está acabando com a previdência social em
proveito de um regime de assistência universal para idosos de mais de 70
anos. É isso que está em pauta. Todo o resto é diversionismo.
Vai acabar a previdência. Aquele capítulo da Constituição sobre
seguridade social, aborda saúde, previdência e assistência. O de
previdência está suprimido. Vai ser um grande programa assistencial de
um salário mínimo para amparar a velhice”.
“A conta não está fechando porque não se cria emprego. A conta não
está fechando porque não se dinamiza o mercado de trabalho, por causa do
calote na previdência, porque não cobram os devedores, porque dão
isenções fiscais sem pensar nas consequências futuras. Tem uma fila de
gente antes de chegar no trabalhador rural”.
*
Por três vezes, entrevistei o Fernando Haddad. Na primeira, em
2012, quando disputava a prefeitura de São Paulo, era uma promessa e
tanto. Na segunda, em 2017, o homem que reunia todas as credenciais para
aglutinar as forças da esquerda e do centro, em uma linha lógica depois
de FHC e Lula.
Nesta última, há poucos dias, 47 milhões de votos depois, ainda comentei com ele, “para mim você é um enigma”.
Ao contrário de Bolsonaro, e talvez este seja um problema na
selvagem arena política dos tempos atuais, Haddad, bacharel em direito,
mestre em economia e doutor em filosofia pela USP, atualmente lecionando
gestão e administração pública no Insper, não faz o estilo pé na porta
do presidente, e tem na temperança, no calculismo e no estudo, um traço
marcante.
Antes de encontrá-lo para esta entrevista, ainda tentei avaliar
seu legado como ministro da educação (de 2005 a 2012), conversando com
Mozart Neves, do Instituto Ayrton Senna, educador notável que
infelizmente foi des-convidado por Jair Bolsonaro para assumir o MEC, em
favor do obscuro Ricardo Vélez.
A entrevista portanto se divide em dois blocos. No primeiro, uma
discussão mais aprofundada sobre a crise no MEC, e algumas palavras
sobre a provocativa ideia de se criar uma Lava Jato da Educação, evocada
pelo pensamento dominante do governo atual.
Depois, uma questão mimetizada pelo ator José de Abreu, que
jocosamente se auto-proclamou Presidente da República, colocando de
alguma maneira em xeque uma certa apatia que parece ter tomado conta do
pensamento oposicionista nestes primeiros meses de Jair Bolsonaro.
Haddad, a propósito, é o presidente do Banco Central nesta aventura
cômica, porque “quer enquadrar os bancos”.
Se diz que rir é o melhor remédio mas de Haddad se espera mais e
mais, no mundo real. Qual seria o protagonismo do bloco de oposição e
que espaço Haddad ocupa ou poderia ocupar? Em que medida o movimento
Lula Livre agrega ou desagrega na composição de uma frente mais ampla de
oposição? Qual afinal, o “recado das urnas”?
Em artigo recente, o cientista político André Singer, ex-porta
voz de Lula, que aliás já foi entrevistado aqui no blog, comentou que
está faltando uma frente de oposição capaz de apresentar alternativas
convincentes a ponto de propiciar a formação de uma nova maioria no
país.
Já vimos que, e este é um apêndice meu, com Ciro, FHC e a própria Marina de fora, a estratégia do segundo turno não funcionou.
E como um assunto ia puxando o outro, acabamos falando sobre a
reforma da previdência, sobre a onda de conservadorismo, sobre a
(tresloucada?) ida de Gleisi Hoffman para a posse de Maduro na
Venezuela… e até sobre o Parque do Minhocão, que consta do Plano Diretor
aprovado em sua gestão e que agora, de uma maneira enviesada em sua
opinião, foi encampado pelo prefeito Bruno Covas.
Vamos começar falando sobre educação. Um tempo atrás eu
entrevistei o Mozart Neves, do Instituto Ayrton Senna, que por um
momento tinha sido cogitado e até convidado para ser ministro, e eu
fiquei um pouco impressionado quando ele me contou que, em suas três
décadas de militância, nunca tinha sequer ouvido falar no Ricardo Vélez,
o atual titular da Educação.
Acho que foi comum a todos nós. No momento do anúncio as pessoas
procuraram saber quem é, porque ninguém sabia. Eu mesmo fiquei
positivamente surpreso com o boato de que Mozart seria nomeado ministro,
porque é uma pessoa da área. Foi reitor, secretário da educação,
conselheiro do Conselho Nacional da Educação. Mas aí a realidade se
impôs e surgiu o nome do Vélez que, pra ser bem honesto, acho que
ninguém conhece ainda. Porque não se sabe ainda o que é exatamente a
gestão dele no Ministério da Educação.
O que dá pra falar sobre essa gestão do Ministério da
Educação nesses primeiros meses? Tivemos a situação do hino nacional.
Agora essa rixa entre olavistas e militaristas.
Tem alguns parâmetros que são úteis pra avaliar o começo de uma
gestão. O primeiro é como você olha para educação superior, sobretudo a
educação superior pública. Um governo de direita já tem preconceito com
universidade pública. Um governo de extrema-direita quer destruir a
universidade pública. Você veja que todas as menções que são feitas às
universidades públicas são depreciativas. Não se vê mérito nas
universidades federais por parte do governo Bolsonaro. Ao contrário, o
que se vê são ameaças permanentes. O tempo todo ameaçando reitores, a
autonomia, ameaçando uma intervenção; não bastasse o que aconteceu com o
reitor da Federal de Santa Catarina. Paira uma nuvem muito cinzenta
sobre as Federais, com ameaças, veladas ou não, praticamente diárias do
ministro e do próprio Presidente da República. Isso já é bastante
indicativo do que se pretende em relação à educação superior no Brasil.
Em relação à educação básica, o diagnóstico é de que falta disciplina
nas escolas. E o ataque é obstinadamente contra as professoras do país.
O que é curioso, porque se falta autoridade e disciplina na escola,
falta empoderar essa figura que é central no processo de ensino e
aprendizagem, que é a figura da professora. E eu falo professora, porque
85% da categoria são mulheres. Diante disso, qual o sentido de
enfraquecer a imagem da professora perante os educandos?
Então, por onde quer que se olhe, tanto a educação superior quanto a
básica, as ameaças à livre-docência, à autonomia, elas estão na ordem do
dia.
E, pra piorar o cenário, nós temos o problema de que o governo acha
que se gasta demais com educação. Esse é um grave problema, porque o
Brasil passou todo o século XX – sem exceção de década ou presidente –
sub investindo em educação. Enquanto países desenvolvidos investiam, em
proporção ao PIB, de 4% a 5% em educação, o Brasil investia de 2% a 3%. A
dívida educacional que nós temos é herdada do século XX.
Mesmo os militares, que governaram o país por vinte e um anos e são
tomados por referência, investiram 50% da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)
em proporção ao PIB. O único presidente que superou a média da OCDE,
foi justamente o Lula. Ele entrega o país investindo mais do que a média
da OCDE.
Mas na educação básica, o custo por aluno mais que dobrou de
2000 pra cá. E os resultados não vieram, como era de se esperar. A
estagnação se manteve.
A educação no Brasil é medida com um indicador de qualidade, que foi criado na minha gestão, chamado Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica),
onde você mede em escola por escola a evolução do aprendizado. O que
efetivamente podemos dizer sobre o Ideb de 2005 pra cá? Porque foi em
2005 que as coisas começaram a mudar.
A primeira coisa a se observar: dois terços do desempenho de um aluno
vêm de casa, do background familiar. A escola representa um terço. Eu
sou professor doutor da USP, assim como minha esposa; evidentemente que
nossos filhos chegaram na escola com um tipo de formação pela dinâmica
da própria casa, com todo aparato pra dar sustentação a uma criança
desde o berço. Agora, pega uma família humilde do campo, que chega na
escola com sete anos, com um vocabulário de 400 palavras; imaginar que a
escola vai suprir todas suas deficiências é um equívoco. Então, em
primeiro lugar temos que lembrar que os pais dos brasileiros têm baixa
escolaridade.
Segundo lugar: o Ideb do Fundamental I – do primeiro ao quinto ano –
superou a média estabelecida pelo próprio ministério. A meta do
Fundamental II não foi atingida, mas houve um incremento substancial. O
que estamos devendo? Um ensino médio de qualidade.
Que é o mais difícil.
Sim. E é quando a OCDE avalia os estudantes. O Brasil não conseguiu
fazer chegar ao ensino médio a qualidade que já pode ser observada no
ensino fundamental. E isso frustra os brasileiros, com toda a razão. Nós
temos que entender qual a razão dos mecanismos utilizados com sucesso
no ensino fundamental não terem tido os mesmos resultados no ensino
médio.
Há Estados que estão demonstrando uma capacidade interessante de
atuação no ensino médio. Pernambuco, por exemplo, estava na
antepenúltima posição no Ideb e saltou pra o primeiro lugar fazendo
educação de tempo integral, educação de ensino médio vinculada a
educação profissional, mudança de currículo, formação de professores.
Então tem jeito.
O que você deixou de fazer no Ministério?
Poderia passar a entrevista falando de tudo que fiz, mas a pergunta é
direta, então vou dizer. No ensino médio, eu não completei a reforma
que eu queria. Fizemos uma reforma do Sistema S (Senai, Sesc, Sesi e outros),
obrigando os recursos a serem investidos em cursos gratuitos. Eu queria
também pegar o dinheiro do sistema S e, ao invés de cortar 50% dos
recursos, como recomenda o Bolsonaro, queria integrar o Sistema S ao
ensino médio. Porque acho que o foco do sistema S deveria ser o apoio ao
ensino médio público. Se nós conseguíssemos isso, teríamos dado o salto
que não foi dado.
O sistema S resistiu. Toda a imprensa – inclusive o Estadão – fizeram
editoriais contra a minha proposta. Essa proposta foi sabotada pelos
próprios meios de comunicação. Não souberam avaliar a importância que
teria para o jovem brasileiro, contar com todos os R$16 bilhões do
sistema S num projeto de emancipação da juventude.
Estava lendo algumas coisas que o Bolsonaro andou falando
sobre educação e suas propostas. E ele questiona essa porcentagem do PIB
gasta com educação…
Ele desconhece praticamente todos os assuntos. Esse também. Não é
novidade. A ignorância do mandatário do país realmente choca os que
dedicaram uma vida a estudar o Brasil.
Tem esse papo da Lava Jato da Educação. Há uma discussão de
que as mensalidades das faculdades particulares teriam aumentado mesmo
com todo o suporte que foi dado a elas. E que aí talvez tivesse algo a
ser investigado.
O MEC não regula preço de mensalidade. O modelo brasileiro de
educação superior é majoritariamente privado e as escolas competem entre
si.
Você acha que a Lava Jato da Educação é um mecanismo persecutório de um novo governo?
Já ouvi de tudo. Já ouvi que é pra intimidar as federais. Onde o
Brasil constitui massa crítica? Na universidade pública. O pensamento
nacional está na universidade pública, por isso que é sempre escolhida
como alvo da direita. É de lá que sai o pensamento sobre soberania
popular, soberania nacional, sobre visão estratégica do país. É lá que
se forja uma visão coletiva de futuro.
Quando você tem um governo que é entreguista, é contra a soberania
popular e nacional, um governo intimidatório de minorias políticas, há
toda razão para esse governo ter medo das federais. Então, pode ser um
lance de antecipação de problemas.
Tem muita especulação no ar sobre isso. Eu acho que eles ainda estão
tateando como vão fazer com as universidades o que estão fazendo com a
imprensa, por exemplo. Não é diferente.
Uma coisa é você criticar a imprensa, outra coisa é intimidar, que é o
que o governo está tentando fazer por meio das redes sociais. O próprio
presidente dando nomes a serem atacados pela sua matilha virtual.
O nome de uma repórter!
É uma matilha virtual que recebe mensagens diretas do presidente pra
sair latindo atrás de profissionais da imprensa. Isso é temerário. Na
minha opinião, o que eles estão tentando esboçar em relação às federais,
livre-docência, liberdade crítica de expressão, é uma coisa muito
parecida com o que já estão fazendo com alguns jornalistas.
Está chegando nas universidades?
Esses olavetes estão aí dizendo que os reitores das federais que se
preparem, porque a tal da Lava Jato da Educação vai apurar todas as
irregularidades.
O Tribunal de Contas da União sempre funcionou com toda a liberdade. A
presidente Dilma foi impedida a partir de um relatório do Tribunal de
Contas da União. Imagina um reitor. Se um presidente nunca esteve imune a
fiscalização do Tribunal de Contas, por que um reitor estaria? Não faz
nenhum sentido.
O que você pensa sobre a ideia da Lava Jato da Educação?
Eu teria uma manifestação a fazer se soubesse do que se trata. Outro
dia ouvi uma especulação de que seria uma armadilha pra mim. Uma
armadilha pra chegar no Haddad.
Já fui escrutinado e continuo sendo normalmente. Me parece uma
atitude de intimidação das universidades públicas. Acho que são elas o
real alvo dessa operação.
Você já leu alguma coisa do Olavo?
Não, não li. Me escapou (risos).
A obra dele tem valor acadêmico?
Olha, eu não gosto de falar de livro que não li. Quando falam dos
meus sem ler, eu também não gosto. Não sei se é relevante ou não, porém,
pelos meus pares que já enfrentaram um texto ou outro dele, me parece
que não é algo que vá ficar.
Qual foi sua reação ao saber da história do hino?
O problema não é o hino, o problema é a carta do ministro que tinha o
slogan do candidato. Acho que não tem paralelo na história do país um
ministro mandar ler o slogan do candidato pras crianças numa escola.
Isso não tem precedente.
E filmar.
Mandar filmar cantando o hino é um constrangimento, inclusive ilegal
sem a autorização dos pais. Agora, mandar ler uma carta com slogan de
candidato é improbidade administrativa, que deveria estar sendo apurada,
inclusive.
Você conhece alguém dessa equipe?
Não, ninguém.
O que você espera desse ministério?
Pra ser honesto, nada. Torço pra que eles não tomem nenhuma atitude.
Quanto menos fizerem, melhor. Porque é uma coisa espantosa esse
ministério da Educação atual. É muito espantoso o que está acontecendo.
Eles não têm 80 dias no cargo e estão se matando em torno de questões
prosaicas, que não deviam nem estar sendo discutidas por pessoas com o
mínimo de familiaridade com o tema.
Conversei com Mozart Neves sobre o Escola Sem Partido. A
opinião dele é que, ainda que haja um caso ou outro, é um absurdo isso
se tornar uma questão, que temos milhares de prioridades na frente
disso.
Você está diante de um governo cujo atual presidente foi ao Jornal
Nacional durante a campanha denunciar um livro que nunca chegou às
escolas, dizendo que aquilo era parte de um kit para orientar as
crianças sexualmente. Ele não saiu dessa vibração ainda, ele continua
falando as coisas da campanha.
Eu fico perplexo de ver como tem certas pessoas que apoiam o Governo –
e têm todo o direito de fazê-lo –, não reconhecem o tamanho desses
equívocos. Porque é gente que sabe o que é uma escola, está educando os
filhos. Seria bom que essas pessoas manifestassem um certo desconforto,
para o bem do próprio Governo.
E sobre os professores. Acha que há um desencorajamento da classe?
Sim, quando você transforma uma categoria em inimigo público número um.
Quando o atual presidente grava uma mensagem estimulando alunos a
filmarem o que eles chamam de “professores doutrinadores”. Acha que uma
criança de 12 anos tem condição de avaliar uma coisa dessas? Que tipo de
mensagem é essa?
E quem vai julgar? O Bolsonaro? Ele, que é uma pessoa pouco afeita a
leitura, vai julgar professor? Ele vai dizer o que pode ou não pode
entrar no Enem? Mesmo se ele fosse detentor de grande cultura, já seria
um problema.
Você acha que pode haver uma fuga de cérebros?
Não sei. Os dados da receita federal de baixa de CPF continuam
preocupantes. Se você contabilizar quem vem para o Brasil e quem deixa, o
número de pessoas que deixam é muito maior, segundo dados do próprio
governo. Agora, não temos ainda o mapeamento de quem está deixando, qual
o perfil do brasileiro que deixa o país.
Será que rolou uma virada de chave no Brasil? A gente está entrando em uma nova era de conservadorismo mesmo?
Eu penso que há uma tentativa de mudança de regime. A chamada
democracia liberal está em xeque hoje. O projeto atual tem uma coisa
meio plebiscitária, que é antiliberal num certo sentido. Porque o
liberalismo tem como um dos seus pressupostos conter qualquer tendência à
tirania da maioria. A ideia de uma maioria tirânica é antiliberal.
Gesta-se uma democracia de tipo não-liberal no Brasil, com uma forte
carga plebiscitária sobre qualquer tema, e que coloque em risco direitos
civis e políticos. Ainda não está consolidada, ainda há reações. O
Bolsonaro agride a imprensa. Há reação. Agride o pensamento crítico. Há
reação. Agride o movimento social. Há reação. O dia que não houver mais…
A tentativa do Governo é de criar uma maioria tirânica pra tratar a
minoria mais ou menos na chave do amigo-inimigo, que é um clássico dos
governos de extrema-direita. A extrema-direita não tolera contestação,
vinda de onde vier: imprensa, universidade, classe artística, comunidade
científica. Tudo o que contesta o poder é tratado como inimigo.
Eu fico me perguntando se essas falas mais caricatas da Damares não representam o pensamento predominante.
Dei uma entrevista há alguns meses dizendo que o ultra neoliberalismo
do Guedes quase que necessitava de um complemento obscurantista pra
poder passar. Eu entendo que essa agenda obscurantista é parte do
enredo, e o que a gente vê como caricatura não é bem uma caricatura.
Está dialogando com uma camada da sociedade cujo preconceito vem sendo
alimentado por vários mecanismos; tem muitas emissoras de TV e rádio
degradantes e degradadas, pra não falar de charlatões no campo da
cultura, da religião e tudo o mais. Então, isso tem um caldo de cultura
que acaba contribuindo para um programa econômico ultra neoliberal.
Em 1999, entrevistei o Edir Macedo para uma capa da Veja. Me
lembro de uma discussão muito grande sobre os evangélicos um dia tomarem
o poder.
Ele nunca escondeu a pretensão de poder.
E agora eles tomaram o poder de uma certa maneira.
Me passaram uma projeção, que estou por confirmar, de que em 2024 os evangélicos serão maioria no Brasil.
Acho curioso que Record e SBT estejam em evidência crescente
em termos de conexão com o governo e a Globo, decrescente. Isso sempre
foi um sonho da esquerda mais renhida.
Na verdade, estamos falando de coisas diferentes. Estamos falando da
quebra de um oligopólio. O Brasil é o único país que a audiência é tão
concentrada numa única emissora, que tem um poder descomunal em relação à
vida pública. Mas, não te tiro a razão, isso veio de um jeito
inesperado.
Vamos falar sobre a Venezuela. Acha que o Maduro deve ficar?
Eu vejo do mesmo jeito que eu via durante a campanha, não mudei minha
maneira de ver o problema. Achava que o Brasil não devia tomar partido,
até pra poder ajudar. Como ajudou, por exemplo, em 2003, quando
provavelmente evitamos um conflito armado entre Estados Unidos e
Venezuela, na época do Chávez. O Lula fez a mediação e tivemos alguns
anos de tranquilidade na região até a morte do Chávez, em 2013. Tivemos
um longo período em que a Venezuela estava dentro dos conformes,
lembrando sempre das tensões internas que são recorrentes naquele país.
Acho que o Lula teve um bom entendimento. Inclusive, quando o Chávez
começou a comprar muito armamento russo, o Lula montou um organismo de
segurança regional, um pouco pra acompanhar os movimentos dele.
E o Brasil foi fortemente beneficiado pelas boas relações que manteve
com a Venezuela. Nosso saldo comercial com eles era enorme, se não me
engano, de R$ 5 bilhões.
O Brasil conseguiu evitar a guerra, conseguiu fortalecer as
instituições democráticas venezuelanas, conseguiu ter um comércio
extraordinário com a Venezuela, muito proveitoso pra nós, de maneira que
eu penso que ali era o paradigma a ser considerado de, efetivamente, a
gente, como líder regional, evitar conflito armado, evitar
posicionamento partidário, nos imiscuindo num território que não é o
nosso. De certa maneira, até o presente momento, prevalece a nossa
visão, mesmo no Grupo de Lima.
O Grupo de Lima afastou a ideia de uma intervenção militar, o que era
a coisa mais importante a fazer. Na minha opinião, o Brasil, em outra
conjuntura, defenderia a intervenção militar. Mas, diante da sua
situação minoritária no Grupo de Lima, acabou recuando. Agora, o clã
queria guerra.
A Gleisi Hoffman ter ido à posse do Maduro recentemente, não caiu muito bem.
Foi um gesto que, talvez, devesse ser mais bem comunicado. Era um
gesto a favor da paz, da autodeterminação dos povos. Gestos precisam ser
bem comunicados para que a intenção fique clara.
O PT tem uma resolução longa sobre determinação dos povos, e que foi a marca do nosso período frente ao governo.
Como está o PT? Eu senti um vácuo da oposição, depois das eleições. Não sei se é um movimento normal…
É natural que depois de 80 dias a oposição ainda não seja o assunto do momento. Até porque há legítimas expectativas.
Eu considero a bancada do PT na Câmara e no Senado da melhor
qualidade, excelentes bancadas. Tem tudo pra aparecer bem: bons
projetos, boas críticas, boas recomendações. E nós temos quatro
governadores também de excelente qualidade. Fora os governos que nós
apoiamos.
Você pretende fazer o quê? Como está pensando estrategicamente?
Não tenho projeto pessoal praticamente nunca. Nunca militei por mim
mesmo. Quando saí da prefeitura, o Lula perguntou pra mim: “Qual seu
projeto pessoal?”. Respondi: “Presidente, eu sou muito ambicioso pra ter
um projeto pessoal”. Quero dizer, você é escalado pra posição A, B ou C
em função do projeto que foi forjado com vistas à vitória. Aconteceu de
eu ser candidato a Presidente da República. Poderia não ter sido eu.
Agora você é, naturalmente, um líder de oposição.
Estou fazendo meu papel. Estou contribuindo com o partido,
conversando com as pessoas. Falo com os governadores, falo com a
bancada, falo com os dirigentes. É um trabalho que não tem tanta
visibilidade, mas é imprescindível pra forjar um projeto alternativo ao
que está colocado. Existe um momento de formulação, de conversa. Acho
que estão cobrando da oposição uma articulação muito prematura.
Sobre a presidência do PT. Você é um candidato natural?
Não tem essa conversa. Já disse que meu papel é outro, está bem
estabelecido isso. Vai ter um processo natural de discussão interna.
Em termos de unidade de esquerda, Lula Livre é um tema que divide?
É natural que seja assim. Agora, com toda sinceridade, eu penso que a
Manuela, o Boulos, até o Ciro, do jeito dele, sempre deram declarações
bastante corajosas pelo ambiente político que se estava vivendo.
A questão do Lula ficou muito estigmatizada.
Está muito séria a situação.
Há vários casos de corrupção no país, muita gente presa e tal. Mas
daí você vê, tem uma conta de tantos milhões no exterior, uma evolução
patrimonial inexplicável. Ok. Você pode até lamentar a pessoa ter
errado, mas, enfim, tem que pagar.
Agora, você lê o processo do Lula e fala: cadê? Onde está a conexão
com a Petrobrás? Criam-se jargões jurídicos novos, ‘apartamento
atribuído’. Eu não sei o que é isso. Apartamento atribuído a alguém. É
dele ou não é? Do que estamos falando?
Estamos preocupados com a democracia, com o uso das instituições em proveito ou desfavor de uma força política.
Qual a sua visão sobre o bloco de oposição que está se formando? Seguimos replicando o modelo de desagregação do segundo turno?
Eu acho que, assim como o bloco da situação ainda não está plenamente
constituído, é natural que o bloco da oposição também esteja em fase de
constituição. Mas já há um núcleo básico que pode ser observado. Nas
bancadas do PT, PSOL, PCdoB, PSB com certeza; não diria juntos, mas
articulados. E acredito que essa carta recém-publicada dos governadores
do nordeste seja muito significativa. Porque são governadores
progressistas e que marcam posição de uma maneira muito ativa, muito
responsável e politicamente madura, inaugurando uma forma de interação
com o Governo Federal muito interessante. Eu diria que são dois
movimentos, o das bancadas desses quatro partidos e dos governadores do
nordeste que realmente são uma novidade.
E como ficam os outros partidos, como Rede, PDT, PSDB?
Eu acho que há alguns partidos mais de centro, ou centro-direita
moderada, que podem pontualmente estar conosco também, sobretudo no que
diz respeito à defesa dos direitos civis, direitos políticos e
ambientais. Acredito que estarão menos conosco na defesa dos direitos
sociais e trabalhistas.
Sobre a Rede, acho que estão em um momento de definição. Eu tenho
expectativa que eles façam um movimento parecido com o que fez o PSB,
que depois de um período que estava se alinhando mais à centro-direita
moderada, voltou às raízes.
O PSDB está numa situação diferente. Ele está sendo comandado hoje
por lideranças de direita, como o caso do Doria, mas ainda tem uma base
minoritária de centro, eu diria, e que está procurando um destino.
Eu acredito que o centro tem uma tarefa pela frente de tentar compor
um núcleo para se diferenciar do Governo Federal e dos governadores do
sudeste – Doria, Zema e Witzel.
José de Abreu, depois que se autoproclamou presidente,
comentou que estava todo mundo apático. Mas, ao mesmo tempo, foi um
começo de governo tão fulminante…
Ou fumegante (risos).
Essa autoproclamação do José de Abreu não reflete um certo niilismo?
Eu não estou nessa chave. Acredito que as coisas estão se
constituindo. Primeiro que a eleição do Bolsonaro é em si um espanto,
para o Brasil e para o mundo. Estamos falando de uma das pessoas menos
qualificadas para o cargo que se podia imaginar. É natural que haja um
processo de acomodação, e na minha opinião está sendo precoce até, em
função do descalabro que é esse início de Governo.
Eu entendo que as posições estão ficando mais nítidas. Nas redes
sociais – apesar das tentativas cada vez mais vãs de usar as fake news
como armas de guerra -, as pessoas estão começando a ser familiarizar
com esses novos tempos, a se posicionar.
Eu vejo espaço para uma reorganização político-partidária no Brasil,
depois da hecatombe que aconteceu entre 2013 e 2018. Mas não vai ser em
cinco semanas que você vai pôr ordem em cinco anos de delírio. Isso leva
um tempo e trabalho sério, capacidade de organização.
A maior carência que eu sinto hoje no mundo da política é uma visão
estratégica da esquerda de embate. Os movimentos táticos do dia a dia
são importantes, mas nós precisamos mais fôlego para que a estratégia de
retomada do desenvolvimento social sustentável seja recolocada na ordem
do dia.
Você chegou a aderir à presidência do José de Abreu?
Fui nomeado presidente do Banco Central (risos)
Uau! Você tem alguma fala enquanto presidente do Banco Central desse Governo?
(risos) O José de Abreu me ligou e falou pra eu escolher um cargo. Eu
falei que queria ser presidente do Banco Central, porque eu quero
enquadrar os bancos.
Ontem estive em um evento, comentei que o entrevistaria, e
uma amiga pediu pra te perguntar: “por que você não se desvencilha da
mochila pesada do PT?”.
As pessoas precisam compreender, eu não me filiei ontem ao PT. Estou
desde os anos 80 filiado, desde a época do movimento estudantil.
Eu fiz parte de um projeto, sobretudo no governo Lula, que eu
praticamente fiquei todo o tempo; e eu considero esse o melhor período
da minha vida pública. Foi um momento que vi que o Brasil tinha
efetivamente uma chance de mudar pra melhor e de deixar um passado
nefasto pra trás. Superar suas enormes desigualdades, sua intolerância,
seu racismo. Eu via ali oportunidade.
Eu entendo que existe uma frustração. Tem toda uma decantação de
narrativas que está acontecendo, vai levar um tempo, mas eu penso que o
PT ainda é o instrumento da classe trabalhadora. Se os trabalhadores
quiserem transformar o Brasil, eles têm ainda à disposição esse
instrumento. Sem prejuízo de reconhecer mérito em outras agremiações, eu
penso que o PT é ainda o partido mais forte da centro-esquerda, em
função do legado que deixou pra população mais frágil economicamente do
país.
Eu estou nesse curso: como a gente faz pra retomar as transformações que o Brasil viveu e precisa reviver?
A discussão sobre que partido estou não é a discussão que faço comigo
mesmo. A discussão que faço comigo mesmo não é até onde eu posso
chegar, dentro ou fora do PT, mas sim até que ponto os trabalhadores
podem chegar com os instrumentos disponíveis e que eles criaram.
Há algumas semanas entrevistei o senador Randolfe Rodrigues
(Rede). Num dado momento ele falou que o antipetismo ajudou a eleger o
Bolsonaro.
Não acredito que tenha sido determinante, mas ajudou. Só que as fake
news também ajudaram, a facada ajudou, o establishment ter fechado com o
Bolsonaro ajudou… Tem muita coisa que ajudou.
Outro dia vi uma análise do Marcos Coimbra, do Vox Populi, dizendo
que o antipetismo não era um fator explicativo. Bom, tivemos 47 milhões
de votos, 45%. Ele diz com todas as letras: não há o que explique a
vitória do Bolsonaro. Não foi o antipetismo.
Eu não diria que não é importante. Existe e foi cultivado durante muitos anos por setores da sociedade muito influentes.
Você sente resistência no PT? Acho você um enigma: não te vejo como um consenso no PT e nem fora.
Nem o Lula foi consenso no PT antes da presidência. Vamos lembrar que
o Suplicy disputou prévia com o Lula. O Lula já perdeu prévias. Ele só
se tornou unanimidade no partido depois da presidência. Mas ele sofreu
contestação dentro do PT mesmo com sua enorme capacidade de liderança.
As palavras consenso, unanimidade, são estranhas à política. Acho que
não cabe muito esse tipo de consideração. Às vezes as pessoas usam
instrumentos de análise em relação a mim que elas não usam em relação às
outras pessoas. Esse é o enigma que gostaria de entender. “Você não é
consenso”. E quem é?
Lula tem passado por perdas muito fortes. Como ele está
emocionalmente? Outro dia li um texto do Reinaldo Azevedo em que ele
chama o Lula de herói trágico, e eu concordo com esse olhar.
A diferença do Bolsonaro pro Lula é a diferença da mitomania pra
mitologia. Essa é minha convicção plena. Um é um mitômano, o outro é
mitológico.
Nós estamos nesse impasse de ter uma liderança da qualidade do Lula
encarcerada, e o resultado disso tudo ocupando a Presidência de
República.
O Lula vive as dores. Quando perdeu a Marisa, o irmão, o neto, quando
nós perdemos a eleição; ele vive aquela dor. O que impressiona não é
isso, porque se ele fosse frio, talvez não despertasse nem nosso
interesse. O que impressiona é a capacidade dele de se recuperar de
sucessivas dores.
Quando o Reinaldo Azevedo fala de um herói trágico, acho que ele
captou isso. O Lula tem uma capacidade até aqui, inesgotável de
reconstrução de si mesmo.
Como está sua expectativa com esse Governo?
Eu sou uma pessoa que sabe o poder de um Governo porque eu participei
de um. Governos têm capacidade de regeneração, recuperação.
Tem alguma coisa boa nesse Governo? Alguém bom? Alguma ideia boa?
Tá difícil, viu! Sinceramente, está difícil.
Li uma análise que dizia que este governo é formado por quatro pilares: Sérgio Moro, Paulo Guedes, militares e a família.
Minha visão é um pouquinho diferente. Tem um grupo que é regressivo,
do ponto de vista da cultura, do comportamento, e que está instalado nas
nossas Relações Exteriores, Direitos Humanos, MEC, que é o clã. Tudo
puxa para uma linha mais obscurantista, mais regressiva. Tem também o
núcleo ultraliberal, e tem o núcleo da tutela e intimidação. Eu divido
assim esse governo. Não acho que o Moro seja um núcleo isolado, por
exemplo, dos militares. Acho que é um pacote.
E o projeto da reforma da previdência?
Da maneira como foi construído, é péssimo o projeto. Se você
espremer, o que sobra do projeto do Guedes pra valer é que você vai ter a
partir dos 70 anos uma renda mínima de um salário mínimo. É isso. A
previdência pública acaba, você só vai ter a assistência. Uma renda
mínima para todos os brasileiros de 70 anos ou mais de um salário
mínimo. Todo mundo vai ser obrigado a ir para o regime de capitalização.
Vai ser um grande programa assistencial de um salário mínimo para
amparar a velhice.
Mas a reforma é necessária.
Meu programa de governo tem um capítulo inteiro sobre previdência. O
Lula fez reforma da previdência, a Dilma fez. Pra nós não é um tabu
discutir previdência, mas não é isso que está sendo discutido no governo
Bolsonaro.
O governo Bolsonaro está acabando com a previdência social em
proveito de um regime de assistência universal para idosos de mais de 70
anos. É isso que está em pauta. Todo o resto é diversionismo.
Vai acabar a previdência. Aquele capítulo da constituição sobre
seguridade social, aborda saúde, previdência e assistência. O de
previdência está suprimido. Vamos ver se o da saúde segura.
É tudo muito sério e nós estamos discutindo a Damares, sabe? Onde
estamos com a cabeça? A Damares é importante também, porque morrem
mulheres, morrem LGBTs. A violência está armada. Citamos o Reinaldo
Azevedo. Ele fez um post muito interessante sobre a mensagem subliminar
do famoso Golden Shower. Porque aquilo lá era: libera a violência.
Qual é sua proposta de reforma?
A minha proposta de previdência assegurava as reformas dos regimes
próprios de previdência. Tratava de previdência pública, não da
previdência do regime geral. A gente não mexeria no setor privado
naquele momento. Íamos ajustar os privilégios do setor público.
Mas a conta realmente não está fechando…
Um dia me perguntaram: “qual um bom ano pra fazer a reforma da
previdência?”. Eu falei: Todos. Todo ano você tem que fazer um ajuste.
Por exemplo, as pensões no Brasil precisam ser ajustadas. O regime
previdenciário tem que ser estudado, construído, diferente do que está
sendo proposto.
A conta não está fechando porque não se cria emprego. A conta não
está fechando porque não se dinamiza o mercado de trabalho, por causa do
calote na previdência, porque não cobram os devedores, porque dão
isenções fiscais sem pensar nas consequências futuras. Tem uma fila de
gente antes de chegar no trabalhador rural. E não vai precisar chegar no
trabalhador rural, é esse o ponto.
Últimas palavras. Qual sua consideração sobre a tragédia que aconteceu em Suzano?
Você vê o que ocorreu agora na Nova Zelândia… Existe hoje um
recrudescimento da intolerância no mundo em função da crise do
neoliberalismo.
2008 é o marco da crise do neoliberalismo. Um projeto que foi
iniciado nos anos 80 fez-se água em 2008 e gerou uma enorme crise. Um
dos subprodutos dessa crise é a intolerância étnica e religiosa, dentre
outras.
Nesses momentos, o que se espera de quem tem alguma influência na
sociedade é justamente fazer o contraponto a isso. É o papel de
governantes, de artistas, cientistas, intelectuais. Nesse momento, remar
contra a maré.
E sobre a decisão de transformar o Minhocão em parque?
Eu acho que o Plano Diretor deu um prazo razoável para uma tomada de
decisão. Realmente, aquilo foi uma intervenção urbana desastrosa pra
cidade, que degradou toda a São João, que era uma avenida belíssima. Os
vereadores deram uma resposta para aquele desastre urbanístico.
Mas, temos tempo ainda. O que me parece ruim é uma gestão que não tem
nenhuma marca positiva tomar uma decisão afobada e sem os estudos
necessários para encaminhar a questão de maneira madura. O
encaminhamento que está sendo dado não é o melhor, do ponto de vista
técnico.
Eu sou a favor do experimentalismo na cidade. Por exemplo, abrir a
Paulista aos domingos podia ter dado errado. Agora, pra saber isso, você
tem que fazer e esperar 90, 120 dias, e ver como a cidade se reorganiza
em torno. Podia ser que depois daquele tempo decidíssemos voltar atrás.
A gestão atual é uma gestão sem nenhuma marca, com o pior nível de
investimento da história recente de São Paulo. Paralisou praticamente
todas as obras de saúde, educação, drenagem, mobilidade urbana.
Mas não está tudo em crise?
Mais crise do que eu peguei, impossível! Peguei os dois piores anos
da história do capitalismo. 2015/16 foi a pior recessão desde o
pós-guerra, e ainda assim nós mantivemos os investimentos.
Tivemos dez prêmios internacionais, incluindo mobilidade urbana,
plano diretor, finanças, dentre outros. E hoje São Paulo é uma cidade
apagada, para a qual ninguém olha mais. Estadão