O grau de escolaridade dos pais diz muito sobre as chances de ascensão social de um cidadão no Brasil. Em um grupo de 100 pessoas com familiares sem nenhuma instrução, 70 chegam no máximo ao fim do ensino fundamental e só entre 4 e 5 (ou 4,7%) concluem o ensino superior. Já se os pais terminaram a faculdade o mais provável é que os filhos também sigam esse caminho.
Esses dados são de estudo do economista Paulo Tafner, fundador e diretor-presidente do recém-criado Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS). Para ele, a falta de mobilidade social no Brasil é um fator de perpetuação da pobreza, mesmo após anos de crescimento econômico e de programas de transferência de renda. Basicamente, trata-se da dificuldade que um filho de família pobre tem para ascender na pirâmide e ter melhores salários.
As barreiras são principalmente educacionais, mas também estão na saúde e na assistência social, e são agravadas quando se trata da população negra.
No ano passado, um em cada quatro brasileiros viviam com menos de US$ 5 (R$ 26) por dia, o que caracteriza a condição de pobreza. Neste ano, com o auxílio emergencial, a fotografia mudou, mas não o filme.
O IMDS sintetiza o problema dizendo que "os pobres de hoje são filhos dos pobres de ontem". O instituto quer apresentar dados e auxiliar na formulação de políticas públicas para combater a falta de mobilidade social, inclusive trazendo experiências bem-sucedidas no Brasil e no exterior.
"Hoje em dia, um filho de classe média disputa uma corrida com seus pares. E o filho de famílias pobres não disputa a mesma corrida, mas, sim, uma diferente, com muito mais obstáculos do que um filho de classe média e muito mais ainda que um filho de rico", afirma Tafner, que teve participação ativa nos debates da reforma da Previdência aprovada no ano passado.
Segundo ele, as políticas públicas hoje são voltadas para aliviar a condição de pobreza no curto prazo, mas não há um investimento efetivo na qualidade do capital humano de crianças e jovens para que eles possam, no futuro, conquistar suas próprias oportunidades.
"Isso independe do dinheiro que você está transferindo para ele. Tem de ter o dinheiro para combater a pobreza, mas tem de ter um conjunto de programas sociais que façam com que essas crianças e jovens adquiram capital humano para disputar a mesma corrida", afirma o economista.
Dados da OCDE compilados pela entidade mostram que, no Brasil, são necessárias em média nove gerações para que alguém nascido em família de baixa renda alcance o rendimento médio da sociedade. É o dobro dos países da OCDE, onde é preciso aguardar quatro gerações e meia.
Para Tafner, o maior problema está na efetividade do gasto. Por isso, o instituto pretende firmar contratos com prefeituras, que têm o contato na ponta com a população, para dar apoio técnico na formulação de políticas que ajudem a melhorar os gastos com educação e saúde. No futuro, pode-se atuar propondo mudanças legais para lançar bases nacionais de uma política bem-sucedida. O IMDS tem hoje quatro integrantes, incluindo Tafner, e pretende lançar bolsas para incentivar pesquisas sobre o tema em cursos de mestrado e doutorado.
Entre brancos
Filha de pai e mãe com ensino fundamental incompleto, a estudante de publicidade Sabrina Mayara Soares de Alencar, de 23 anos, aposta na conclusão da faculdade para conseguir uma renda melhor no futuro. Ela sabe, porém, que sua trajetória não é regra, mas exceção. Entre seus conhecidos, é uma das poucas a conseguir subir o "degrauzinho" do ensino superior. "É muito difícil, principalmente para quem mora na minha cidade, a renda é muito baixa", conta a estudante, que mora em Itapoã, uma das regiões com menor renda per capita do Distrito Federal.
Ao concluir o curso de publicidade, a hoje estudante estará no pequeno grupo de 14,9% de filhos que completam essa etapa e têm pais com fundamental incompleto, segundo dados do recém-criado Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS). Pela "lógica" da realidade brasileira, o mais provável seria que ela ficasse pelo meio do caminho, prejudicando não apenas suas próprias chances de ganhar mais, mas também reduzindo o potencial de crescimento da economia como um todo.
Os dados mostram que a situação se agrava quando se considera a população negra. Entre filhos de pais sem instrução, a chance de terminar o ensino superior é de 6,2% para brancos e 3,7% para negros. Mesmo entre filhos de pais com ensino superior completo, a proporção de quem repete o feito é de 71,7% para brancos e de 58,8% para negros.
Para dar esse passo na escalada social, Sabrina começou a trabalhar aos 15 anos, como estagiária, e seguiu como jovem aprendiz em uma agência de publicidade após concluir o ensino médio. A pausa nos estudos foi estratégica para conseguir se preparar financeiramente e pagar a própria faculdade, a partir deste ano. A mensalidade, já com um desconto obtido com uma bolsa parcial, fica em torno de R$ 320 por mês.
Hoje, Sabrina trabalha com carteira assinada como assistente de faturamento na mesma agência de publicidade onde era jovem aprendiz. Ela diz ter convicção de que o ensino superior lhe dará melhores condições de competir no mercado de trabalho.
Para o economista Paulo Tafner, diretor-presidente do IMDS e responsável pelo levantamento, o problema da mobilidade social não está restrito à questão racial, uma vez que atinge também brancos pobres. "Mas, obviamente, que no caso dos negros é um pouco mais grave", afirma ele.
Confira a entrevista com Paulo Tafner:
De onde veio a ideia do instituto?
Em
primeiro lugar, porque são mais de 30 anos de trabalho que envolvem
questões sociais, particularmente a persistente pobreza no Brasil e os
elevados índices de desigualdade. O Brasil nos últimos anos não cresceu,
mas há 30 anos vem crescendo, embora menos do que poderia, e a gente
tem situação de persistência de pobreza e de desigualdade. E tem
programas sociais fortes, como Bolsa Família. Isso nos levou a
questionar o seguinte: por que a gente, apesar de crescer, ainda que
moderadamente, apesar de ter feito amplo programa de transferência de
renda como o Bolsa Família e outros programas sociais, por que (mesmo) a
gente tendo aumentado gasto com educação, saúde, a gente persiste com
índices de pobreza e desigualdade tão assustadores? É diferente do que
se poderia imaginar depois de tanto ter sido feito.
E qual é a causa?
No
Brasil, lamentavelmente, a mobilidade social é baixa. É um país
fechado. Pessoas dos estratos mais pobres, com baixa escolaridade, os
filhos têm pouquíssimas chances de ascender socialmente, tirando casos
excepcionais como jogador de futebol, um cara que é especialmente
talentoso em alguma área. É assim que funciona nossa sociedade. Então a
gente começou a desenvolver essa ideia e convenceu um conjunto de atores
privados, que acharam pertinente um instituto voltado exclusivamente à
questão da mobilidade e do desenvolvimento social no Brasil, com foco em
levantamento das informações, estruturação desse conhecimento e, mais à
frente, a proposição de políticas públicas que aumentem a mobilidade
social.
O que pode ser feito?
Há medidas
relativamente simples que podem ser adequadas como política pública
independentemente de transferência de renda. Mobilidade basicamente é
pegar filhos de famílias cujos pais têm baixa instrução e remuneração
para que eles possam ter possibilidades maiores de migrar para estratos
médios de renda e escolaridade. Assim como será importante ver o extremo
oposto. Num país com alta mobilidade, mais igualdade de oportunidade,
você tem gente indo dos baixos estratos para o médio, tem do médio indo
para rico e tem o contrário, rico indo para o estrato médio. No caso do
Brasil, tudo leva a crer que a migração do 1% mais rico é muito baixa.
Significa dizer o seguinte: são basicamente as mesmas famílias que
controlam a riqueza e os acessos há décadas, e isso não é bom. O bom é
ter mobilidade.
O que está por trás do problema?
Basicamente,
uma primeira constatação é que não falta dinheiro. A gente gasta com
educação mais do que gastam muitos países no mundo, e a gente não produz
educação boa para as crianças. E educação é o mais potente fator para
mobilidade social. Gastamos com saúde a média de outros países como
proporção do PIB, mas a nossa saúde em geral é ruim. O resultado efetivo
do gasto é muito precário no Brasil. Isso significa ter mudança
importante de política pública. Na área de educação, é necessário não só
que haja manutenção do gasto, mas também um controle da qualidade do
gasto.
Como?
Ter conteúdo mínimo obrigatório
para todas as escolas públicas, independentemente da região, da renda
média. Pobre e rico vão ter que aprender. É difícil? Então aí tem que
ter um acompanhamento, por exemplo, com reforço escolar. Tem que
diminuir o número de aulas perdidas na escola, que é enorme. Em alguns
lugares isso chega a 20%, 22% das aulas. Isso ocorre nas localidades de
renda baixa, com famílias mais pobres. Não adianta só gastar, é
necessário cuidar da política pública, acompanhar, gerar mecanismos que
gerem resultados efetivos.
Do ponto de vista racial, tem essa diferenciação na mobilidade social?
Tem,
em que pese o fato isso ser um recorte. Obviamente eu não poderia dizer
que o problema de mobilidade no Brasil está restrito à questão racial.
Vale para todo mundo. Obviamente que no caso dos negros é um pouco mais
grave. Em alguns casos, se assemelham muito.
Como fica o discurso da meritocracia?
Acho
que temos que privilegiar a meritocracia, mas temos que dar condições
para que as crianças filhas de ricos e de pobres, de instruídos e de
analfabetos, participem da mesma corrida. Uma vez que eu crio essas
condições, aí o mérito predomina. É claro que igualdade (total) é a
meta, mas é uma meta que nunca vai ser atingida. Filho de rico vai ter
acesso a coisas que o Estado jamais poderá prover, como networking
social. Mas ele vai ter o mesmo conteúdo na escola. Se eu colocar para
disputar na universidade em pé de igualdade em termos de conhecimentos
gerais, matemática, física, química, português, um preto pobre e um
branco rico têm condições iguais de ir bem no vestibular e fazer
faculdade com mérito, inclusive sem precisar de cotas.
Agência Estado/DomTotal