O pastor Valdinei Ferreira, titular da Primeira Igreja Presbiteriana
Independente de São Paulo, o mais antigo templo protestante da capital
paulista, inaugurado em 1865, concedeu entrevista falando sobre o
cenário político que se desenha no Brasil após a vitória de Jair
Bolsonaro (PSL), e declarou que os evangélicos precisam evitar extremos
da esquerda e também da direita.
Ferreira, que integra o movimento político Reforma Brasil,
admitiu que o apoio maciço dos evangélicos ao presidente eleito é
legítimo, pois o candidato reuniu propostas que atendiam aos anseios da
população em áreas relevantes da sociedade.
“As razões pelas quais as pessoas votaram são legítimas. Querem uma
sociedade mais segura, e Bolsonaro canalizou isso. Votaram contra o
sistema, e ele também conseguiu personificar isso. Acredito que o fator
decisivo foi o discurso em torno da família tradicional. Um negócio que
vai demorar muito tempo para se esclarecer é toda essa narrativa a
respeito de “kit gay”, discussões de gênero. Isso teve um efeito grande
nas igrejas em geral”, declarou o pastor presbiteriano, em entrevista à
jornalista Anna Virginia Balloussier, da
Folha de S. Paulo.
Sobre as queixas de conservadores contra as exigências de
progressistas, a chamada “luta de classes” que a esquerda conseguiu
instalar na sociedade em todo o mundo através do discurso de
diferenciação de vários segmentos, o pastor descreveu a situação como um
verdadeiro desafio que a democracia, enquanto conceito, tem pela
frente.
“Parte das minorias não se sente representada, e parte da maioria se
sente acuada pela emergência das minorias. É algo novo na sociedade
brasileira, e também na Europa, nos EUA. Nossa democracia está buscando
jeitos de conciliar interesses conflitantes. Por exemplo, uma fronteira é
a questão do papel do Estado, da escola e da família na esfera íntima
que é a orientação sexual. A gente não vai sair disso sem bom senso”,
alertou.
Confira a íntegra da entrevista, com críticas do pastor ao projeto
Escola Sem Partido, lideranças neopentecostais e à bancada evangélica:
Da internet às ruas, há muita hostilidade no ar. Como retomar o diálogo entre quem pensa diferente?
Agostinho diz que a verdade não pode ser minha nem sua, tem que
ser nossa. O próprio cristianismo tem recursos para que as partes se
ouçam e cedam mutuamente. É voltar para aquilo que é a tradição cristã:
tolerância. Difícil é enfrentar esses esquemas conspiratórios.
E quais seriam?
Pega gente da direita que fala em Ursal, Foro de São Paulo, tudo
como se fosse um grande plano em marcha. O mesmo se aplica à esquerda
que diz que a Lava Jato é ação do FBI, que o Moro foi treinado pelos
americanos. Uma simplificação que faz a pessoa perder a capacidade de
entender o que se passa.
O sr. fala em “apoio estridente” do bloco evangélico a Bolsonaro. Seriam cerca de 70%. A que atribui isso?
As razões pelas quais as pessoas votaram são legítimas. Querem
uma sociedade mais segura, e Bolsonaro canalizou isso. Votaram contra o
sistema, e ele também conseguiu personificar isso. Acredito que o fator
decisivo foi o discurso em torno da família tradicional. Um negócio que
vai demorar muito tempo para se esclarecer é toda essa narrativa a
respeito de “kit gay”, discussões de gênero. Isso teve um efeito grande
nas igrejas em geral.
Como conciliar, numa democracia, direitos de minorias e
daqueles que querem preservar um núcleo familiar que veem como
biblicamente correto?
Aí que os extremos atrapalham. Parte das minorias não se sente
representada, e parte da maioria se sente acuada pela emergência das
minorias. É algo novo na sociedade brasileira, e também na Europa, nos
EUA. Nossa democracia está buscando jeitos de conciliar interesses
conflitantes. Por exemplo, uma fronteira é a questão do papel do Estado,
da escola e da família na esfera íntima que é a orientação sexual. A
gente não vai sair disso sem bom senso.
Nesse contexto, como vê o Escola Sem Partido?
Uma bobagem. É legítimo reivindicar que não se tenha doutrinação,
no sentido de quase que um aliciamento por partidos ou movimentos
sociais. Agora, qual a linha a julgar que o professor, ao passar
conteúdo de marxismo, parte da história do Ocidente, induziu o aluno a
integrar movimentos de esquerda? Dou aula na nossa faculdade. “Manifesto
Comunista” é leitura obrigatória. É entender o papel de Marx no
capitalismo. Vamos criar um índex do que não se pode ler? Entrei na
Universidade Estadual de Londrina nos anos 1980. Só Marx, tudo Marx. Daí
fui para a USP, e a briga maior era para ensinar Max Weber. Quem
defende o Escola Sem Partido faria um favor à sociedade se criasse
institutos para promover pensamentos que divergem da esquerda. O que
vale é o debate de ideias.
Há uma minoria evangélica mais progressista. Como é a divisão no segmento?
O segmento é conservador. Agora, isso não significa ser contra
minorias, preconceituoso. Você conserva a manutenção da sua vida, sem
que isso tenha que ser imposto aos outros. Uma das bandeiras do
protestantismo: não teríamos igrejas protestantes se você não tivesse
liberdade de escolher a que igreja pertencer. Conservadorismo não é
necessariamente ser intolerante, e progressismo não é necessariamente
ser tolerante.
Hoje alas da esquerda avaliam se não trataram mal evangélicos e
agora perderam esse eleitorado. É preciso frisar: aqueles que deram
apoio estridente a Bolsonaro também estiveram nos palanques de Lula e
Dilma [Edir Macedo, Silas Malafaia etc.]. Existe um setor evangélico
muito bem articulado politicamente, que tem compromisso com o poder.
Agora, a esquerda muitas vezes tem preconceito em relação à religião.
Uma coisa que as pentecostais têm muito forte é a sensibilidade social.
Há um esforço social forte com viciados, moradores de rua. Nesse
sentido, a esquerda poderia manter diálogo muito maior com as igrejas.
Quando ela se identificou com essas bandeiras identitárias, sejam
mulheres, LGBTs, não fazia uma coisa errada. Mas, ao colocar o acento de
uma forma mais forte nisso, criou esse sentimento “olha, [evangélicos]
não somos representados por eles adequadamente”.
Recurso usado por pastores de frentes progressistas é frisar
que nenhum cristão apoiaria frases como “bandido bom é bandido morto” ou
falas de Bolsonaro como “prefiro que um filho meu morra num acidente do
que apareça com um bigodudo por aí”. Por que isso não teve impacto no
segmento?
Você tem declarações de natureza anticristã, claramente. Mas
precisa separar o seguinte: a igreja enquanto instituição não deve
apoiar ou vetar qualquer candidato. Agora, [fiéis], de acordo com sua
sensibilidade, filtram esse tipo de declaração, decidem se é impeditivo
de votar no candidato ou se merece ser relevado no contexto político.
Quem está do outro lado também usa raciocínio para vetar nomes da
esquerda, como evocar o “kit gay”. Bolsonaro tem a oportunidade de
amadurecer. A Constituição prevê o direito de minorias. Se não conseguir
lidar com isso, serão quatro anos terríveis, de turbulência.
Qual papel a igreja deve ter no Estado e na educação?
Precisa participar. A laicidade é vista como “todos os argumentos
valem, menos o religioso”. Isso empobrece a diversidade. O desafio das
igrejas é aprender a separar o que, do ponto de vista da doutrina, é
imoral do que é ilegal. Você não pode, numa sociedade plural, se
apropriar de mecanismos do Estado para impor determinado conteúdo. E não
faz sentido nenhum, todo tipo de obediência só faz sentido se for
livre, se for de coração, e não por constrangimento de qualquer
natureza.
O sr. diz que, após a eleição de Bolsonaro, cabe zelar “de
modo intransigente” pela “institucionalidade democrática”. Até aqui,
acha que ele dá sinais disso?
Bolsonaro e os filhos agem como o sujeito que atira usando um
simulador. Agora ele é o presidente, o filho é senador [Flavio], o
outro, deputado [Eduardo]. O que falam produz estragos reais. Tenho a
impressão de que não conseguem avaliar a dimensão disso e continuam
fazendo discurso como se fosse o da simulação, da campanha. Mas a fala
do presidente tem peso no mundo inteiro. Exemplo foi a transferência da
embaixada para Jerusalém. Imediatamente o Egito reagiu. Espero que
Bolsonaro amadureça e aprenda que não há mais espaço para falas que
agradam a determinado setor da população.
O que achou da ideia de transferir a embaixada, elogiada por muitos evangélicos?
Tem que ser avaliado com cautela. O Brasil não tem o peso dos
EUA. O ato atrapalha negociações sobre o status final de Jerusalém,
fundamental para pacificar a região. Não contribui para uma solução que
faça justiça aos palestinos.
A bancada evangélica crescerá em 2019. É um sinal da pluralidade
no Brasil, que sempre teve uma cultura de esconder diferenças, a ideia
do caldeirão onde se mistura tudo. Nos anos recentes, tivemos pessoas
colocando a identidade: sou negro, mulher, gay. Alguém se identificar
como evangélico e ter uma bancada alinhada a isso não é o problema, o
problema é o que você defende enquanto evangélico.
O que quer dizer o painel “Fé Pública” em frente à igreja?
A fé em Deus é pessoal, mas nunca individualista. Como disse
Jesus: “Amarás o Senhor, teu Deus, e o teu próximo como a ti mesmo’”. A
fé sempre diz respeito ao modo como trato os outros. Num segundo painel,
citamos o teólogo Karl Barth: a igreja atravessa a história obedecendo e
desobedecendo. Contamos quando Billy Graham [um dos maiores
evangelizadores americanos, morto em fevereiro] foi convidado a pregar
na África do Sul. Queriam que fizesse um encontro para brancos e outro
para negros. Ele se recusou. Claro, há muitos erros por trás dos
acertos. A ideia não é camuflar, dizer que a igreja sempre esteve do
lado certo. Mas quem lê o Evangelho com profundidade tem capacidade de
autocrítica. Nem sempre acompanhar a maioria significa ser fiel ao
Evangelho.
E onde a igreja errou?
Apoiou a escravidão, teve dificuldade em lidar com o papel das mulheres. É histórico.